terça-feira, 9 de março de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – diálogo sobre o amor e sobre o monopólio da felicidade; Péricles garante que possui cem contos e que sua pretendida pode contar com isso para fugirem rumo à felicidade; Barata discordou da decisão dos jovens; diálogo sobre a liberdade, seus limites e incoerências dos que se imaginam livres e em melhores condições do que os encarcerados; as histórias não têm fim; fim do segundo ato


Péricles gostou de ouvir Nancy dizer que fugiriam e que seriam felizes caso ele conseguisse os cem contos... E ela confirmou que, numa realidade completamente nova, sempre receberia um pouco do dinheiro e cada vez mais se certificaria de que a felicidade não está nele, mas no amor... Emendou que “o amor é bem comum”, porém “os donos do mundo o açambarcaram e o tornaram inacessível, como o custo da própria vida!”.
O rapaz entendeu que ela recorria a juízos apreendidos com o velho, então a corrigiu garantindo que “o amor é como o ar, a água e o céu! O amor é de todos!” Novamente Nancy retrucou afirmando que seu pretendente era inocente ao não perceber que “o amor pertence ao dinheiro” e que “o dinheiro pertence a meia dúzia”... Somente pagando um “tributo aos donos da vida” podemos viver... E “para amar é preciso viver!” Péricles insistiu que “a vida é nossa”, e ela não discordou, porém emendou que “a vida é de todos, mas está nas mãos deles”.
Ela procurou mostrar ao jovem enamorado que, se aceitasse corresponder ao seu amor, ele seria como o “ladrão do amor” que já havia sido vendido ao velho. Péricles questionou o motivo de ela ter “vendido o amor”.
Em resposta, Nancy quis mostrar que essa havia sido a condição para que pudesse viver... O rapaz redarguiu dizendo que “há muitos meios de viver”. Ela disse que tudo dependia dos “donos da vida” e que era uma questão de eles consentirem ou não... Assim, os destinos das pessoas estão em suas mãos e, de acordo com o interesse deles, elas são felizes ou infelizes.
Nancy sentenciou que “ninguém é feliz, ladrão ou assassino por vontade própria”. Péricles admitiu que, se era assim, deviam “roubar um pouco de felicidade”. Ela retrucou novamente ao dizer-lhe que aquela sugestão não era das que se realizam facilmente.
O moço animou-se a dizer que no dia seguinte teria cem contos em mãos... Nancy duvidou. Estaria louco? Mentindo? De modo algum! Foi o que ele respondeu ao mesmo tempo em que afirmou que também ele tem o direito de viver. E sem estender mais a conversa perguntou à amada se estavam acertados para o dia seguinte...
Ela sinalizou que sim. Desde a porta, Péricles perguntou quanto valiam cem contos em suas mãos... Nancy não escondeu a animação e respondeu que a quantia valia toda felicidade que não pertencia a eles... Sim, ele concordou, mas ressaltou que haveriam de roubá-la e que, com o dinheiro, teriam “a felicidade que está nas mãos dos donos da vida”.
(...)

Aos poucos o cenário se escurece... Outro ambiente se ilumina. E este é o da porta da igreja onde se encontravam o velho mendigo e seu companheiro Barata.

(...)
Barata ouviu atentamente a história... No final discordou da decisão de Péricles e Nancy... Fugir? Uma bobagem! Isso não adianta!
O velho admitiu que o camarada estava progredindo em suas análises, emendou que “a Terra é uma grande penitenciária” e que só mesmo quando chegamos ao fim de nossas existências, ao sermos “encerrados nos cubículos escuros dos cemitérios”, “é que somos postos em liberdade”. Nesse sentido, os suicidas são os que “fogem”.
Barata animou-se a dizer que “ninguém vive em liberdade”. O velho provocou perguntando o que é a liberdade e o outro respondeu que “á andar à vontade, podendo fazer o que quiser”.
O velho comentou que os prisioneiros também “ficam em liberdade em suas celas”... Barata observou que “as celas são muito pequenas” e ouviu o outro dizer que “são um pouco menores” do que os cubículos onde vivemos.
Barata não aceitou a ideia e quis mostrar que ele mesmo vivia bem e em largos espaços... O velho entendeu que o colega estava querendo associar as “ruas da cidade” por onde mendigava aos seus “largos espaços”, todavia observou que elas “são muito menores do que os cubículos para os presos”.
Por viver fora da prisão, o mendigo Barata considerava que devia se esforçar para viver, mas que tinha liberdade. O outro continuou a retrucar afirmando que o camarada era “dos mais infelizes penitenciários da vida” e que provavelmente jamais conhecera a verdadeira liberdade... E por quê? “Porque a liberdade é felicidade e nada mais”... O velho disse isso e prosseguiu afirmando que há condenados que mesmo após terem cumprido sua pena “pedem para ficar na prisão”. No entanto todos creem que “só é feliz quem está fora da prisão”.
Barata quis concluir que, já que é assim, então “é melhor morrer do que viver preso a vida inteira”. E o velho completou dizendo que “então é mais feliz um homem condenado à morte do que um homem condenado a morrer de fome”. E por quê? Barata quis saber e ouviu do companheiro que “ambos morrem. Um morre na miséria, inocentemente. E o outro, que procurou a morte, cometendo um crime, morre cercado de todo o conforto, depois de satisfeitas todas as suas vontades, por mais absurdas que sejam”...
Aquelas considerações eram demais para o Barata. Por isso ele disse que o velho era terrível. Este respondeu que “terrível é a vida”. Será mesmo? Barata sugeriu que, para o companheiro cheio de histórias, a vida devia ser sempre cheia de prazer... Nem mesmo a mulher o fazia sofrer!
O velho explicou que “a mulher é invencível”, mas “se rende à inteligência”... Barata balançou a cabeça e disse que nem sempre era como o outro estava dizendo. Na sequência confessou que queria conhecer o “final da história”, mas ouviu o camarada afirmar que as histórias não acabam. Ocorre que se sucedem “novos personagens” na trama... E isso o que é? A vida!
Barata perguntou se o moço que havia se interessado por Nancy havia morrido... O velho respondeu que não. E não morreria enquanto não pagasse o que lhe devia.
(...)
No mesmo instante o próprio Péricles passou diante dos mendigos e atirou uma pratinha ao velho. O velho apontou para o tipo e revelou ao Barata quem era aquele que acabava de dar-lhe dez tostões... “Deus lhe pague”.
Este é o fim do segundo ato.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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