quarta-feira, 9 de junho de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – fragmentos do viajante francês Urbain Souchu de Rennefort a respeito da movimentação de foliões no Recife de 1666; traços carnavalescos das festividades e tradição folclórica das congadas; sobre a liderança de Nzinga Mbandi nas lutas revolucionárias contra os portugueses em Angola e repercussões nas congadas celebradas no Brasil; folguedo natalino de alagoas e relações com as lutas e derrota em Palmares


O livro esclarece que as notas de Urbain Souchu de Rennefort, um viajante francês que se instalou no Recife por quatro meses em 1666, constituem “a mais antiga informação documental” sobre as alegres manifestações de negros nas ruas por ocasião dos “atos de sagração de rei e rainha do Congo” no Brasil.
De acordo com nota do livro, o pesquisador Pereira da Costa tratou da citação de Urbain Souchu, extraída de “Mémoires pour servir a l’histoire des Indes Orientales”, em “Arquivos Pernambucanos”, de 2000.
O francês, que teria acompanhado de perto o evento, pôde notar que, terminada a missa, “os fiéis transformaram-se em foliões” e na sequência:

                   “marcharam pelas ruas cantando e recitando versos por eles improvisados, precedidos de atabaques, trombetas e pandeiros. Vestiam as roupas de seus senhores, trazendo correntes de ouro e brincos de ouro e pérolas; alguns estavam mascarados”.

(...)
Percebeu-se que, no Brasil, houve um deslocamento do que antes tinha lugar nas igrejas (as “solenidades cívico-religiosas”) para as ruas, onde as “manifestações negras coletivas” ressignificaram o “fenômeno teatral das coroações de Reis do Congo”.
O autor esclarece que a mudança fez com que as manifestações herdadas da antiga tradição dos congoleses assumissem traços carnavalescos. Essa cultura popular tão marcada pela memória das coroações, que outrora se davam no interior das igrejas como um resgate do reinado do Congo e “revivida nos desfilas”, foi classificada por Mário de Andrade como “danças dramáticas”. Em nosso Folclore elas são conhecidas como “cortejos, danças e folguedos” que recebem os nomes de congos, congados ou congadas”.
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Durante o século XVII, Angola foi palco de lutas entre seus nativos e os portugueses colonizadores... A resistência angolana contou com a liderança da “chefe negra rainha Ginga, ou Nzinga Mbandi” que, além de agregar significativo contingente de guerreiros da vizinhança, se destacava por comandar ações com táticas que lembram a de guerrilhas, com “avanços e recuos”.
Ao tempo dos conflitos, e muito depois deles, os exploradores trataram de disseminar uma imagem desprezível de Nizinga Mbandi. O fato é que, além de exercer a liderança revolucionária, soube se valer da “presença perturbadora dos holandeses na região” e tramar alianças contra os portugueses.
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Os grandes feitos da rainha Nzinga Mbandi repercutiram nas várias localidades de domínio português... No Brasil, as manifestações festivas relacionadas às congadas foram afetadas pelas notícias e passaram por algumas “modificações”. É certo também que, de acordo com Tinhorão, “a própria ideia de um Congo ideal oferecida aos negros expatriados perdeu o seu valor”.
Formaram-se outros movimentos culturais com inspiração nos cortejos anteriores. Mas não se pode dizer que estes mantivessem vínculos com a “tradição direta dos Reinados do Congo negro-portugueses”.
Foi o caso, por exemplo, de um folguedo que apareceu em alagoas também no século XVII. Ainda de acordo com o autor, tratava-se de um “folguedo natalino” e havia sido organizado ao tempo mesmo da resistência dos negros estabelecidos no quilombo de Palmares. Não por acaso o auto tinha “Quilombo” por denominação, já que seu propósito era o de dramatizar a luta dos aquilombados. Mas em vez disso, na realidade, os participantes mostravam através das danças (uma série de lutas entre “negros fugitivos e índios da região”) “com a coreografia dançante de suas espadas” a fim de conquistarem “o amor de uma rainha”.
De fato, o citado folguedo alagoano chega a causar espanto. Em nota, Tinhorão explica que de certo modo há uma fundamentação histórico-sociológica para a trama desenvolvida pelo enredo. É que os aquilombados eram majoritariamente do sexo masculino e, assim sendo, planejavam “assaltos às populações vizinhas para conseguir mulheres”.
O autor destaca ainda que “no auto negro alagoano os escravos fugidos acabaram vencidos e retornaram à condição de escravos, como pedia a boa ordem político-social do tempo”. Ou seja, a destruição de Palmares devastou o sonho de liberdade dos negros ao mesmo tempo que significou o triunfo dos poderosos que os mantinham subjugados.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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