terça-feira, 29 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – ansiedade e angústia depois do pedido de revisão da pena; aceitando que o recurso seria rejeitado, poderia pensar que “a vida não vale a pena ser vivida” e que a morte chegará também para os que permanecerão após o fim de sua existência; o natural distanciamento da Maria; o capelão de tantas visitas rejeitadas entrou subitamente na cela; incompatibilidades entre o religioso e o descrente Meursault

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus-da-frieza.html antes de ler esta postagem:

Meursault passava boa parte do dia a pensar no recurso...
Primeiro levava em consideração a hipótese da rejeição da papelada, o que significava que não escaparia da sentença capital. A partir dessa constatação, admitia que morreria “mais cedo do que outros” e, talvez como consolo, buscasse se convencer de que “a vida não vale a pena ser vivida”.
Refletia que no final das contas tanto fazia morrer aos trinta anos ou aos setenta... Enquanto alguns deixam a vida, muitos outros continuam a viver, mas a morte também pode chegar “hoje ou daqui a vinte anos” para qualquer um dos que permanecem viventes.
É claro que o rapaz não deixava de levar em consideração que a morte antecipada por causa da execução lhe tirava os anos de existência que potencialmente teria pela frente. Isso sem dúvida o incomodava, então procurava inibir essas reflexões ou tentava imaginar como estaria pensando no futuro, quando a morte o alcançaria de qualquer jeito.
(...)
De qualquer modo, para Meursault, prevalecia a máxima obviedade de que a morte encerra o ciclo vital, não importando quando e como. Por isso mesmo na maior parte do tempo aceitava que o melhor seria rejeitarem o recurso que o advogado havia impetrado. Se por um lado admitia essa ideia, por outro se via na necessidade de combater o “impulso do sangue e do corpo” pela vida.
Conseguia certa tranquilidade apenas nos momentos em que a resignação vencia a batalha contra o “impulso do sangue e do corpo”. E foi num desses momentos que se recusou a receber a visita do padre que atendia na prisão...
Em seu íntimo, descartava o recurso e podia sentir que “as ondas de sangue circulavam regularmente pelo corpo”. Estava tão sossegado na ocasião (da referida visita do padre) que queria apenas permanecer deitado, observando o céu que anunciava a chegada da noite e, pela primeira vez em muito tempo, pensando na Maria.
(...)
Aliás, fazia um bom tempo que ela não lhe escrevia...
Meursault pensou que talvez “se tivesse cansado de ser a amante de um condenado à morte”. Talvez ela estivesse doente ou teria morrido... Quem é que poderia saber?
O certo é que estavam separados e nada os ligava ou lembrava que se relacionavam afetivamente. Tornou-se indiferente pensar na Maria ou lembrar-se dela. Ele bem sabia que, estando para morrer, não devia despertar mais nenhum interesse.
Aceitava com naturalidade que após o seu passamento as pessoas se esquecessem dele, pois nada teriam a fazer com ele ou sua memória. E pensava mesmo sobre essas coisas quando o padre entrou em sua cela numa outra oportunidade.
(...)
Obviamente se espantou com a entrada súbita do religioso... Este logo percebeu o seu estranhamento e foi dizendo para não ter medo. O rapaz comentou que era de se esperar que o capelão o visitasse em outro momento.
O padre disse que a visita que fazia era amigável e que não tinha nada a ver com o recurso ou com o desenrolar de seu processo. Emendou que não sabia nada a respeito e foi se sentando na cama. Na sequência pediu que se juntasse a ele.
Apesar de achar que o homem havia chegado com docilidade, Meursault recusou-se a qualquer aproximação. O outro acomodou os cotovelos sobre os joelhos, baixou a cabeça e pôs-se a olhar para as próprias mãos. Esfregou-as e manteve-se cabisbaixo e pensativo por um bom tempo.
Tanto é que o rapaz já nem se dava conta da presença do padre em sua cela quando este se levantou e o encarou dizendo que várias vezes havia sido dispensado por ele. Perguntou por que se recusava a recebê-lo. Meursault respondeu que não tinha fé.
O padre quis saber se ele tinha certeza do que estava falando... O condenado não queria saber de conversa e foi dizendo que não valia a pena fazer-lhe aquele tipo de pergunta. Então o religioso acomodou as costas na parede e adotou uma postura desanimada... Sem muita segurança de que seria ouvido pelo rapaz, disse que muitas vezes nos julgamos “certos de alguma coisa quando, na realidade, não temos certeza alguma”.
De fato, Meursault não fez qualquer comentário a respeito do que acabara de ouvir. Todavia o padre insistiu e quis saber sua opinião... Tentando acabar de vez com o diálogo, ele disse apenas que “era possível”. Depois acrescentou que não estava certo do que realmente lhe interessava, mas sabia perfeitamente que o assunto que o padre trazia não lhe interessava. 
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas