domingo, 27 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – as últimas movimentações antes do anúncio da sentença ocorreram no fim da tarde; o advogado de defesa havia alimentado falsas esperanças; não há nada a declarar ou a se ouvir do capelão; nova cela, fragmento do céu e reflexões sobre a terrível engrenagem do sistema judicial

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus_26.html antes de ler esta postagem:

A tarde avançou e a atmosfera se tornou menos abafada. Meursault entendeu que a movimentação das ruas já devia ser a de fim de dia, pois certos barulhos que lhe chegavam aos ouvidos indicavam isso mesmo.
Na sala ainda apinhada de gente esperava-se a conclusão do caso. Ele olhou atentamente para a disposição das pessoas ao redor e não pôde deixar de se espantar ao lembrar que estavam ali como estiveram no primeiro dia e que esperavam por algo que só dizia respeito a ele.
Mais uma vez viu o jovem jornalista que trajava um paletó cinza e a estranha mulher do restaurante que, no final das contas, nada tinha a ver com o Celeste... Neste momento percebeu que durante as declarações dos advogados não olhou para a Maria. Não se esquecera dela, mas estivera ocupado com o desenrolar do processo...
Pôde observar que ela estava entre o Celeste e o Raimundo Sintés e que lhe fazia um sinal, parecendo transmitir alívio pelo fim das falações... Por um breve momento sorriu para ele, mas Meursault sentia-se tão cansado e “com o coração fechado” que foi incapaz de sorrir-lhe de volta.
(...)
Ao retornarem, os juízes se dirigiram aos jurados e “leram uma série de pontos principais do processo”. Entre as palavras que mais se destacaram aos ouvidos de Meursault estavam “culpado de crime”, “provocação” e “circunstâncias atenuantes”. Depois de ouvirem a leitura e algumas considerações gerais, os jurados foram retirados para uma sala específica.
O réu foi encaminhado para o recinto onde anteriormente tivera de esperar pelo protocolo do início. O advogado que o havia defendido apareceu e mostrou-se confiante... Foi mais cordial do que de outras vezes e confiava que Meursault cumpriria “alguns anos de prisão”.
O rapaz quis saber se havia a possibilidade de revogarem parte da condenação caso a sentença fosse desfavorável... O advogado adiantou que não se pleiteia revogação em processos “sem mais nem menos”, e que havia usado a tática “de não indispor o júri”. Essas palavras o convenceram e por fim concordou que a derrogação só resultaria em trabalho extra e a produção de “papelada inútil” para longas análises.
O advogado finalizou a conversa dizendo que ainda poderiam apelar, mas estava convencido de que os resultados lhes seriam favoráveis.
(...)
Depois de uns quarenta e cinco minutos ouviu-se o soar de uma campainha. O advogado disse ao Meursault que “o presidente do júri vai ler as respostas”, por isso ele retornaria à sala. Disse também que o réu só podia voltar ao tribunal no momento do anúncio da sentença.
De onde estava, ele ouviu o bater de portas e a movimentação de pessoas. Fez-se silêncio e na sequência “uma voz surda” fez uns pronunciamentos. Depois a campainha tocou, abriram a porta e o conduziram ao local onde estivera durante toda a sessão.
O silêncio era diferenciado... Algo aterrador para Meursault, que procurou o olhar do jovem jornalista. Espantou-se mesmo ao notar que o tipo não mais o fitava e que, em vez disso, esforçava-se por afastar os olhos de sua direção.
Pensou em olhar para a Maria, mas o presidente foi dizendo que lhe “cortariam a cabeça numa praça pública em nome do povo francês”. Obviamente não pôde deixar de estranhar as palavras proferidas, mas entendeu que, diferentemente do que seu advogado lhe adiantara, o resultado havia sido o pior.
Aos poucos conseguiu entender as expressões do público presente. Era certo que esperavam a condenação máxima, mas o anúncio do veredito e da sentença talvez tivesse provocado certo sentimento de compaixão... Pôde notar que até os policiais que o acompanhavam mostravam-se amáveis com ele.
De repente o advogado colocou a mão em seu pulso. O presidente quis saber se Meursault queria declarar algo. Ele respondeu que não e logo o retiraram do recinto.
(...)
Disponibilizaram a visita do capelão. Já era a terceira vez. Acontece que Meursault não quis recebê-lo nem mesmo depois do dramático desfecho no tribunal... Simplesmente não tinha o que lhe dizer ou vontade de falar. Por outro lado, todos sabiam que ele ainda teria muito tempo para ouvir o consolo religioso. No momento interessava-se em descansar e refletir sobre a terrível trama que a “engrenagem do sistema penal” havia lhe reservado. Como fugir da mesma? Haveria alguma saída?
(...)
Ele foi transferido de cela... Entendeu que passaria os dias no novo cubículo até a execução. Mantinha-se na cama e a olhar para o alto, assim podia contemplar um fragmento do céu, as alterações das cores e luminosidade que marcavam as passagens dos dias e noites.
Deitado, com as mãos sob a cabeça, pensava muitas vezes a respeito dos condenados à morte e se houve entre eles quem lograsse escapar do “mecanismo implacável”. Alguém teria conseguido desaparecer “antes da execução e fugir ao cordão dos policiais”?
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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