quarta-feira, 30 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – Maria, e a colorida existência que ela representava, a face que Meursault esperava ver surgindo das pedras de sua cela; o padre tentou uma “aproximação fraterna” e foi rechaçado pelo condenado; no limite, a insistência na ideia de uma necessária remissão provocou a agressão que estava reprimida; depois de ouvir que o religioso rezaria por ele, Meursault deu início ao seu desabafo final

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus-o-padre.html antes de ler esta postagem:

O condenado animou-se a dar uma resposta e falou que olhava as pedras da parede há muitos meses. Podia dizer que não havia nada no mundo que ele conhecesse melhor do que aquelas pedras e que por algum tempo até procurou enxergar uma face nelas. Adiantou que a referida face só podia ter “a cor do céu e a chama do desejo”, pois se tratava da face de Maria. Mas no momento sabia que sua procura havia sido em vão e que estava tudo acabado... Além do mais nunca vira qualquer suor surgir das paredes.
O padre o encarou tristemente... Meursault acomodou as costas na parede e notou que tinha a testa estava bem suada. O outro dizia umas frases que não lhe despertava o menor interesse até que de repente perguntou se podia abraçá-lo. “Não!”, Meursault vociferou no mesmo instante.
O religioso retrocedeu de costas, virou-se para a parede e começou a passar a mão em sua superfície. Na sequência perguntou se ele gostava “tanto assim desta terra”. O rapaz não respondeu e se irritou ainda mais ao notar que o outro dramatizava ao manter-se de costas para ele.
Estava mesmo para pedir que se retirasse quando o religioso se voltou novamente à sua direção e exclamou que não podia acreditar nas palavras que ouvia. Depois insistiu que tinha certeza de que ele já teria desejado “uma outra vida". O rapaz respondeu que certamente isso já tinha lhe ocorrido, mas entendia que isso equivalia a “desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais em feita”, um desses desejos comuns.
O padre o interrompeu e quis que ele lhe dissesse como imaginava “essa outra vida”. Meursault respondeu que seria uma vida que lhe permitisse lembrar-se da vida que experimentara até então. Terminou de responder e emendou que “já bastava”.
(...)
Meursault já não suportava a insistência do capelão, que teimava em continuar a falar a respeito “da outra vida” e da necessidade de reconhecer-se pecador e dependente da Divina Providência... Então resolveu avançar para explicar que “já não tinha muito tempo” e que “não queria perder o tempo que lhe restava com discussões”.
O homem parecia não fazer qualquer questão de finalizar o que tinha para dizer nem de se retirar, então perguntou o motivo de tratá-lo por “senhor” em vez de “pai”.
Essa foi demais! O rapaz não disfarçou o nervosismo e esbravejou que ele não era seu pai, além disso, “estava do lado dos outros”.
O padre colocou a mão em seu ombro, disse um “não, meu filho”. Na sequência cravou que estava do seu lado, mas não podia perceber isso porque “seu coração estava cego”. Por fim, disse que rezaria por ele.
(...)
Isso pareceu ser a “gota d’água”, já que Meursault começou “a gritar em altos berros” e a insultá-lo... Vociferou que não queria que rezasse por ele e que, mesmo que exista um inferno, não se importaria, já que preferia “ser queimado no fogo” a desaparecer.
Visivelmente irritado, agarrou a gola da batina do religioso e continuou a esbravejar com ímpetos de “alegria e cólera”. Provocou-o dizendo que sua confiança e certezas não valiam sequer um “cabelo de mulher”... Como podia ter “certeza de estar vivo”? Por tudo o que representava e dizia “vivia como um morto!”
A respeito de si, Meursault asseverou que era certo que tinha as mãos vazias, mas carregava certezas, e muito mais do que o que dizia que rezaria por ele. Tinha certezas a respeito de sua vida e “da morte que se aproximava”. E não precisava saber muito mais que disso! Gritou ainda que, além de “segurar essa verdade”, sabia que ela o mantinha convicto a respeito de si mesmo.
E prosseguiu em seu desagravo:

                   “Tinha tido razão, tinha ainda razão, teria sempre razão. Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra dada maneira. Fizera isto e não fizera aquilo. Não fizera uma coisa e fizera outra. E depois? Era como se durante este tempo todo tivesse estado à espera deste minuto... E dessa madrugada em que seria justificado”.

Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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