segunda-feira, 28 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – da frieza, precisão e outras reflexões a respeito da execução na guilhotina; outros passatempos do condenado; atentando-se às batidas do coração e às sonoridades que podiam indicar a proximidade do angustiante momento derradeiro; noites em vigília e frase da mãe a respeito de nunca sermos “completamente infelizes”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus_28.html antes de ler esta postagem:

Com a guilhotina era assim, pensava Meursault...
O mecanismo raramente falhava, e se isso ocorresse o equipamento era consertado e voltava-se aos ritos iniciais da execução. Exatamente por causa dessa possibilidade remota é que o condenado se via desejando o pleno “funcionamento da máquina”.
Para ele, aí estava o “defeito”, mas ao mesmo tempo “o segredo da boa organização” de toda engrenagem punitiva, pois o condenado era levado a “colaborar moralmente” e a desejar que tudo ocorresse bem até o amargo fim.
(...)
De fato, tinha de concordar que até então não vinha refletindo corretamente a respeito dessas questões.
Ainda em relação ao ritual de execução na guilhotina, Meursault fazia uma ideia muito embasada no aprendizado que tivera sobre a Revolução Francesa, sobretudo as que diziam respeito às inúmeras execuções do tempo do Terror...
Imaginava que o condenado tivesse de “subir uns degraus” para atingir o patamar onde estaria a lâmina, mas enquanto se dedicava às reflexões em sua cela lembrou-se de certa reprodução fotográfica de um jornal que mostrava “a máquina no chão”.
Perguntou-se por que não havia se lembrado anteriormente da imagem que, de acordo com o seu entendimento, apresentava a guilhotina como “obra de precisão, brilhante e acabada”, todavia bem mais estreita do que ele mesmo imaginava. Entendia que acabamos exagerando “as coisas que não conhecemos” e que, no caso da imagem do jornal, a guilhotina não só estava no chão e no nível do condenado, como se tratava de uma máquina simples.
O condenado se encaminharia à ferramenta que o executaria do mesmo modo como se dirigiria a uma pessoa qualquer. Meursault percebia que também essa constatação tinha alguns aborrecimentos embutidos, já que “a subida ao cadafalso” poderia incutir no executado a imagem de que estaria “ascendendo ao céu”. Estando a máquina no mesmo nível do que a ela se dirigia, a morte chegava-lhe “discretamente, talvez com um pouco de vergonha, mas com muita precisão”.
(...)
Como salientamos na postagem anterior, esses eram os passatempos do Meursault em sua cela...
Normalmente mantinha-se deitado e a contemplar o céu... Conforme o fragmento de firmamento se tornava esverdeado, sabia que a noite se aproximava. Também se dedicava a acompanhar as batidas do coração e custava-lhe aceitar que algum dia elas cessariam, já que fazia muito tempo que o acompanhavam. O certo é que um dado batimento não se estenderia à cabeça, e então seria o fim.
O exercício era dos mais improdutivos... Poderia ficar por horas e avançar pela madrugada, e sempre teria de admitir “que o mais razoável” era não pretender qualquer domínio sobre a situação. Afinal de que lhe adiantaria reconhecer e antecipar-se ao último batimento do coração?
(...)
Apesar de procurar pensar em outras temáticas, algumas coisas o perturbavam com certa regularidade: o momento em que o levariam para a execução, e achava que este só poderia ocorrer numa madrugada; e “o recurso da sentença”.
Tinha convicção de que chegariam de madrugada para levá-lo à execução. Por isso procurava ocupar-se durante as noites, assim não seria surpreendido. Jamais gostara de ser surpreendido e, por outro lado, preferia “estar presente” no momento da condução ao aparelho fatal.
Passou a dormir algumas horas durante os dias exatamente para manter-se desperto na maior parte da noite. Principalmente depois da meia-noite dedicava-se a escutar as menores movimentações da cadeia, assim conseguiu distinguir as sonoridades mais leves. A aptidão deu-lhe a certeza de que jamais ouvira os passos fatídicos.
(...)
O céu se enchia de luz e cores, um novo dia se iniciava na cela, mas logo poderia ouvir passos e isso provocaria uma explosão ao coração. Então lembrava-se das palavras da mãe sobre nunca sermos “completamente infelizes” e avaliava que “mesmo na prisão” tinha de concordar com ela...
Os sons mais diminutos podiam levá-lo a se atirar contra a porta... Posicionava o ouvido contra ela e fixava-se nas sonoridades até reconhecer apenas a rouca respiração... O coração disparava e então reconhecia que teria direito a mais vinte e quatro horas de existência.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas