terça-feira, 29 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – o padre começou a falar a respeito de Deus e da necessidade de entregar-se à Sua misericórdia; Meursault não queria palavras de consolo e tampouco estava disposto a discutir a respeito das decisões dos que aceitaram que “morreriam para uma outra vida”; uma vez que o condenaram, nada mais poderiam exigir; a insistência do catequista tornou-se insuportável ao não admitir que o condenado desprezasse os ensinamentos da doutrina religiosa

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus-ansiedade.html antes de ler esta postagem:

Será que não era por “excesso de desespero” que falava daquele modo? O padre quis saber.
Meursault, que havia dito que não tinha qualquer interesse pelo assunto trazido pelo religioso, garantiu que não se sentia desesperado... Admitiu que sentisse medo, mas sabia que isso era natural.
O padre aproveitou a deixa e adiantou que Deus o ajudaria. Explicou que era assim mesmo, que conhecera muitos outros que estavam na mesma situação dele e que, finalmente, acabavam se voltando para Ele.
Meursault o ouviu e respondeu que os que assim procediam estavam “no seu direito”. Além disso, podia constatar que “tinham tempo”. De sua parte, entendia que ele próprio “não tinha tempo para se interessar pelo que não o interessava” e esperava que ninguém se metesse a querer ajudá-lo.
A afirmação do detento provocou certa irritação no religioso, todavia ele conseguiu manter o controle... Levantou-se, ajeitou as dobras da batina, respirou fundo e se dirigiu ao rapaz tratando-o por “meu amigo”. Disse que se dirigia a ele desse modo não porque se tratasse de “um condenado à morte”, já que pensava mesmo que “todos nós somos condenados à morte”.
Meursault o interrompeu e disse que não era a mesma coisa... Apesar disso garantiu que não se importava e que, além disso, aquela ideia não lhe servia de consolo. O padre não lhe tirou a razão, mas observou que, se não morresse em breve por causa da sentença, morreria de qualquer modo mais tarde. Isso implicava em admitir que o “problema” teria de ser encarado do mesmo modo... Então, como lidaria com a “terrível prova”?
Como sabemos, o rapaz já vinha refletindo sobre isso na solidão de sua cela... Respondeu que lidaria do mesmo modo como encarava a situação no momento... O padre o olhou fixamente, fitando-o nos olhos.
(...)
Meursault entendeu que aquilo era uma intimidação. Era também um jogo ao qual já estava acostumado, pois, em muitas ocasiões, desafiara o Manuel ou o Celeste... O perdedor era quem desviasse os olhos primeiro.
Pelo visto o padre também conhecia o desafio, já que mantinha o olhar sem qualquer tremor e falava sem vacilações... De repente questionou se o condenado não tinha mesmo qualquer esperança e se, além disso, conseguia achar que “morreria inteiramente”.
Meursault respondeu que sim... Isso fez o padre se sentir decepcionado mais uma vez. Ele baixou a cabeça, disse que lamentava e que era impossível suportar sua atitude. Talvez começasse a pensar que aquele condenado era dos mais arrogantes. De sua parte, Meursault já se sentia cansado da conversa e resolveu posicionar-se sob a claraboia...
(...)
Se pensarmos que ele aceitou “o jogo”, temos de concluir que ele foi o “perdedor”. Aconteceu que se encostou à parede e prestou pouca atenção às palavras do religioso que voltava a interrogá-lo.
Via-se que o homem havia se tornado inquieto. Começou a falar apressadamente e com emoção. Talvez por isso Meursault tenha decidido ouvir um pouco do que lhe era dito, e foi assim que percebeu que o religioso queria transmitir-lhe que tinha certeza de que o recurso seria aceito.
Ele disse isso e que estava preocupado por vê-lo carregar “o peso de um pecado” sobre os ombros, e o quanto isso o embaraçava. Emendou que era preciso aliviá-lo e que, em sua opinião, só “a justiça de Deus” tinha o remédio para os males que açoitavam um condenado pela justiça dos tribunais...
(...)
O padre dava a entender que queria que o rapaz compreendesse que “a justiça dos homens”, aquela que o julgara, não era nada diante da justiça divina.
Meursault salientou que “a justiça dos homens” o havia condenado, em outras palavras, Deus não tinha nada a ver com a sua situação de momento... O padre assentiu, mas observou que a sentença do tribunal não o “lavara de seu pecado”... O moço respondeu que não entendia muito bem o que viria a ser um pecado, disse que o tribunal deu a sentença de culpado e que, se assim era, pagaria pelo seu delito. Deixou claro que entendia que não podiam exigir mais nada dele.
O padre tornou a se levantar... Olhando para o chão, o encarcerado pensou que na pequena cela ele não tinha para onde ir e que o seu próximo movimento só podia ser o de se sentar novamente, mas o tipo deu um passo em sua direção e, sem ter como avançar mais, deteve-se e passou a observar o céu...
Por fim, pronunciou que Meursault estava enganado... Tratou-o por “meu filho” e emendou que poderiam pedir-lhe ainda mais... Acrescentou que talvez ainda lhe pedissem. Obviamente Meursault não tinha a menor ideia do que ainda poderiam lhe pedir e por isso perguntou. O padre disse que “poderiam lhe pedir para ver”.
(...)
Ver o quê? Meursault perguntou nervosamente...
O padre olhou à sua volta e visivelmente cansado formulou uma resposta referindo-se às pedras que compunham as paredes da cela... Como se estivesse a poetizar, disse que elas “suavam dor”. Depois acrescentou que até os mais miseráveis dos condenados chegaram a ver “uma Face Divina” a sair da obscuridade.
Certamente pediriam para ele também ver a mesma Face.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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