domingo, 6 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – o tempo entre o primeiro e o segundo disparos inquietava o juiz; a conversa sobre o Crucificado era maçada para Meursault; o juiz não se conformou ao saber que o rapaz não acreditava em Deus e fez referência à postura de outros criminosos diante da imagem; definitivamente não confiaria sua existência e pecados ao Crucificado; o escrivão prosseguiu com seu trabalho; interrogatórios seguintes ganharam ritmo “natural e regulado”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus-o.html antes de ler esta postagem:

Meursault não conseguia acompanhar o raciocínio do juiz de instrução quando este lhe falava a respeito de Cristo e do perdão que só Ele poderia conceder-lhe. Na verdade, sentia-se mais incomodado com o calor extremo e com algumas moscas que voavam pela sala e acabavam pousando em seu rosto...
Por fim sentia que o homem o assustava com o sermão empolgado, mas por outro lado, achava que não devia se importar muito porque no fim das contas o criminoso ali era ele mesmo.
O tipo prosseguiu com sua falação e Meursault entendeu que sua maior dificuldade estava no ponto da confissão em que não se explicava o motivo de o segundo tiro ter sido disparado algum tempo depois do primeiro. Pelo visto o resto de seu depoimento não era obscuro ao juiz.
Esteve mesmo a ponto de dizer-lhe que “não valia a pena obstinar-se” por causa da questão dos disparos, e que aquilo não devia ter tanta importância, mas aconteceu que o homem se adiantou a perguntar-lhe se acreditava em Deus.
(...)
Meursault respondeu que não... Então o juiz mostrou-se indignado e sentou-se para dizer que aquilo era simplesmente impossível, já que “todos os homens acreditam em Deus, mesmo os que não O querem ver”. Falou sobre si mesmo garantindo que, se algum dia duvidasse de Deus e de Sua existência, “a vida deixaria de ter sentido”.
Isso jamais ocorreria. Era essa a sentença que o juiz pretendia transmitir ao incrédulo... Perguntou-lhe se queira que sua vida de magistrado deixasse de ter sentido. Meursault respondeu que não tinha nada com isso, então, do outro lado da mesa, o “servidor da justiça” estendeu o crucifixo e proclamou que era um cristão, e que pedia perdão ao Crucificado pelos pecados do rapaz descrente... Na sequência perguntou: Como é que pode não crer “que Ele sofreu por ti”?
Meursault notou que o homem até o tratava com certo carinho e intimidade, mas estava sem paciência por causa do forte calor. Sequer ouvia com atenção e queria livrar-se daquela conversa. Normalmente, em situações como essas, costumava dar a entender que concordava com o interlocutor exatamente para pôr fim ao assunto. Mas quando apelou para este recurso, o juiz colocou-se em condição de triunfo e afirmou que, enfim, o assassino confiaria sua existência e desventuras ao Crucificado. Não é mesmo? Ele quis saber.
(...)
Mais uma vez Meursault respondeu que não. Então o “juiz pregador” desabou em sua cadeira e, com uma aparência bem cansada, resolveu permanecer em silêncio por algum tempo... Isso permitiu ouvir o som da máquina de escrever que estivera em operação durante todo o tempo. Via-se que o escrivão estava prolongando os registros das últimas frases pronunciadas.
Quando o juiz voltou a falar, o fez com tristeza... Disse que jamais tinha visto “uma alma tão empedernida” como a de Meursault. Emendou que todos os criminosos que compareceram à sua sala sempre “choraram diante da imagem da dor”.
O rapaz esteve a ponto de dizer que aquilo acontecia exatamente porque eram criminosos, mas abandonou a ideia ao lembrar-se que ele mesmo era um criminoso. Percebeu, então, que ainda não estava habituado àquela condição.
O juiz levantou-se dando a entender que o interrogatório havia terminado. Quis saber do rapaz se estava arrependido de “seu gesto” (aqui se referia ao crime)... Meursault respondeu que “mais do que verdadeiro arrependimento, experimentava certo aborrecimento”. Disse isso sabendo que não seria compreendido...
(...)
Depois houve outras ocasiões na presença do juiz de instrução. A essas o advogado compareceu e na maioria das vezes os dois solicitavam-lhe que explicasse melhor certos pormenores das declarações anteriores.
O rapaz notou que pouco o incomodavam com questionamentos acerca de seu modo de ser... De fato, o interrogatório mudou e estava claro que o juiz já não demonstrava interesse particular pelo detento. Parecia mesmo que já havia estabelecido uma classificação para o seu caso. De acordo com o próprio Meursault, “as conversas se tornaram mais cordiais” e basicamente consistiam em trocas de frases entre advogado e juiz, para quem “o caso seguia seu curso”.
Eventualmente, quando “a conversa era de ordem geral”, Meursault participava com suas colocações sempre polêmicas. De sua parte, entendia que, apesar disso, “começava a poder respirar”, pois via que “ninguém era mau” para ele.
Aos poucos os interrogatórios entraram num ritmo “natural e regulado” e foi como se cada um representasse papel bem definido sem provocar alterações de animosidades. Isso fez o rapaz sentir a “impressão ridícula” de “fazer parte da família”.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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