quarta-feira, 23 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – mantido à margem e silenciado, restava ao Meursault acompanhar as enfadonhas falações mais a seu respeito do que sobre o crime; o procurador discursou sobre “a claridade dos fatos”, reveladores da articulação pensada pelo assassino; o júri deveria levar em consideração que o réu sequer demonstrava arrependimento; o homem ainda falaria a respeito da alma do criminoso

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus-o_22.html antes de ler esta postagem:

É claro que Meursault via com muito interesse tudo o que acontecia durante os depoimentos. Dedicava atenção especial ao que falavam a seu respeito e gostaria de intervir... Como sabemos, o advogado que cuidava de sua defesa o inibia proibindo que se manifestasse, insistindo que, “para o seu próprio bem”, precisava permanecer calado.
Então o caso era tratado “à margem de sua pessoa” e ele sentia que sua sorte estava se definindo sem que pudesse opinar. Tinha vontade de interromper os que se manifestavam e explicar que “tinha coisas a dizer”. Apesar disso, sabia que no fundo isso não era verdade... Além disso, já havia percebido que o seu interesse em ouvir o que se dizia não era duradouro e logo se sentia enfastiado com os discursos, sobretudo os do procurador.
Em relação ao que o procurador dizia, reconhecia que apenas alguns pequenos trechos o impressionavam. Isso valia também para os gestos teatrais. Meursault concluiu que o acusador seguia a linha de que o crime havia sido premeditado, já que afirmava que provaria duplamente o que vinha sustentando.
(...)
Para o procurador “a crua claridade dos fatos” forneciam elementos significativos e provas evidentes contra o réu... Além deles havia o “perfil psicológico da alma criminosa” de Meursault que devia ser considerado no veredito.
Todos o ouviram resumir os eventos desde a morte da mãe do rapaz... Salientou sua falta de sensibilidade e o fato de sequer saber a idade dela. Destacou o dia seguinte marcado pelo banho de mar, o envolvimento com Maria, com quem passou a noite após o filme do Fernandel.
Meursault notou que a todo momento o procurador de referia à Maria por “a amante” e pensou que não a via ou a identificava dessa maneira, mas sim como amiga e pelo nome... Não teve tempo de processar o que entendia por ataque verbal à sua companheira porque o raciocínio do acusador prosseguiu com a história do Raimundo Sintés.
De acordo com a interpretação do procurador, o acusado fez o favor de auxiliar o tipo “de moralidade duvidosa”, escrevendo a carta, exatamente para atrair a mulher que acabou sofrendo os maus tratos. E, na praia, o assassino teria provocado os adversários do amigo. Destacou ainda que este se ferira e que o outro lhe pedira o revólver.
Ainda de acordo com o acusador, de posse da arma, Meursault resolveu retornar à praia para eliminar o árabe. Fez isso sozinho depois de ter projetado toda ação. Ele efetuou um disparo e, depois de certo tempo, outros quatro “para ter certeza de que o trabalho ficara bem feito”.
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A execução ocorreu sem que nenhum transtorno o incomodasse. “Calmamente, conscientemente”, isso era o que o procurador queria provar. Por isso emendou que “o fio dos acontecimentos” mostravam que o assassino havia executado sua vítima “com pleno conhecimento de causa”. Insistiu que não se tratava de “crime banal” ou “ato impensado que poderia ser atenuado por certas circunstâncias”.
Na parte final de sua primeira exposição, chamou a atenção dos jurados para a “inteligência” do réu. Todos o ouviram falar e viram que se tratava de alguém que “sabe responder e que conhece o valor das palavras”. Certamente agiu sabendo muito bem o que fazia...
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Meursault ouviu a explanação contra ele. Achou interessante o considerarem inteligente, mas não entendeu a argumentação sobre os motivos de “as qualidades de um homem vulgar erguerem-se esmagadoramente contra um culpado”. Neste ponto, percebia a intenção de vincularem tudo o que viam de ruim em Sintés à sua condição de criminoso.
Isso era de arrasar... Não fez mais questão de ouvir e só voltou a prestar atenção quando o outro passou a falar sobre se podiam defendê-lo com o argumento de que estava arrependido. O discurso era provocativo e o procurador foi taxativo ao dizer que “nunca”, já que em nenhum momento o réu demonstrou qualquer emoção pelo “crime abominável” que havia cometido.
Conforme essas acusações eram pronunciadas, o procurador apontou o dedo na direção do Meursault. O rapaz não entendia o motivo, que certamente tinha a ver com a teatralização da exposição, mas por dentro concordava que não estava muito arrependido do que fizera. Queria ter a oportunidade de explicar e falaria “cordialmente, quase com afeição” que, verdadeiramente, “nunca se arrependera de nada”.
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Meursault sabia que ocupava posição fragilizada. Cedo ou tarde todos tomariam conhecimento do que seria feito dele e ele sabia obviamente que não tinha direito de se pronunciar daquele modo ou de ter “boa vontade e se mostrar afetuoso”.
Podia ignorar o que era dito... Ou simplesmente ouvir. Principalmente porque o procurador passou a falar a respeito de algo sobre o qual “vinha refletindo”, a alma do acusado.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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