Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus-o_22.html antes
de ler esta postagem:
É
claro que Meursault via com muito interesse tudo o que acontecia durante os
depoimentos. Dedicava atenção especial ao que falavam a seu respeito e gostaria
de intervir... Como sabemos, o advogado que cuidava de sua defesa o inibia
proibindo que se manifestasse, insistindo que, “para o seu próprio bem”,
precisava permanecer calado.
Então o caso era tratado “à margem de sua pessoa” e
ele sentia que sua sorte estava se definindo sem que pudesse opinar. Tinha
vontade de interromper os que se manifestavam e explicar que “tinha coisas a
dizer”. Apesar disso, sabia que no fundo isso não era verdade... Além disso, já
havia percebido que o seu interesse em ouvir o que se dizia não era duradouro e
logo se sentia enfastiado com os discursos, sobretudo os do procurador.
Em relação ao que o
procurador dizia, reconhecia que apenas alguns pequenos trechos o
impressionavam. Isso valia também para os gestos teatrais. Meursault concluiu
que o acusador seguia a linha de que o crime havia sido premeditado, já que
afirmava que provaria duplamente o que vinha sustentando.
(...)
Para o procurador “a crua claridade dos fatos”
forneciam elementos significativos e provas evidentes contra o réu... Além
deles havia o “perfil psicológico da alma criminosa” de Meursault que devia ser
considerado no veredito.
Todos o ouviram resumir os eventos desde a morte da
mãe do rapaz... Salientou sua falta de sensibilidade e o fato de sequer saber a
idade dela. Destacou o dia seguinte marcado pelo banho de mar, o envolvimento
com Maria, com quem passou a noite após o filme do Fernandel.
Meursault notou que a todo momento o procurador de
referia à Maria por “a amante” e pensou que não a via ou a identificava dessa
maneira, mas sim como amiga e pelo nome... Não teve tempo de processar o que
entendia por ataque verbal à sua companheira porque o raciocínio do acusador
prosseguiu com a história do Raimundo Sintés.
De acordo com a interpretação do procurador, o acusado
fez o favor de auxiliar o tipo “de moralidade duvidosa”, escrevendo a carta,
exatamente para atrair a mulher que acabou sofrendo os maus tratos. E, na
praia, o assassino teria provocado os adversários do amigo. Destacou ainda que
este se ferira e que o outro lhe pedira o revólver.
Ainda de acordo com o acusador, de posse da arma,
Meursault resolveu retornar à praia para eliminar o árabe. Fez isso sozinho
depois de ter projetado toda ação. Ele efetuou um disparo e, depois de certo
tempo, outros quatro “para ter certeza de que o trabalho ficara bem feito”.
(...)
A execução ocorreu sem que
nenhum transtorno o incomodasse. “Calmamente, conscientemente”, isso era o que
o procurador queria provar. Por isso emendou que “o fio dos acontecimentos”
mostravam que o assassino havia executado sua vítima “com pleno conhecimento de
causa”. Insistiu que não se tratava de “crime banal” ou “ato impensado que
poderia ser atenuado por certas circunstâncias”.
Na parte final de sua
primeira exposição, chamou a atenção dos jurados para a “inteligência” do réu.
Todos o ouviram falar e viram que se tratava de alguém que “sabe responder e
que conhece o valor das palavras”. Certamente agiu sabendo muito bem o que
fazia...
(...)
Meursault
ouviu a explanação contra ele. Achou interessante o considerarem inteligente,
mas não entendeu a argumentação sobre os motivos de “as qualidades de um homem
vulgar erguerem-se esmagadoramente contra um culpado”. Neste ponto, percebia a
intenção de vincularem tudo o que viam de ruim em Sintés à sua condição de
criminoso.
Isso era de arrasar... Não fez mais questão de ouvir e
só voltou a prestar atenção quando o outro passou a falar sobre se podiam
defendê-lo com o argumento de que estava arrependido. O discurso era
provocativo e o procurador foi taxativo ao dizer que “nunca”, já que em nenhum
momento o réu demonstrou qualquer emoção pelo “crime abominável” que havia
cometido.
Conforme essas acusações
eram pronunciadas, o procurador apontou o dedo na direção do Meursault. O rapaz
não entendia o motivo, que certamente tinha a ver com a teatralização da
exposição, mas por dentro concordava que não estava muito arrependido do que
fizera. Queria ter a oportunidade de explicar e falaria “cordialmente, quase
com afeição” que, verdadeiramente, “nunca se arrependera de nada”.
(...)
Meursault sabia que ocupava posição fragilizada. Cedo
ou tarde todos tomariam conhecimento do que seria feito dele e ele sabia
obviamente que não tinha direito de se pronunciar daquele modo ou de ter “boa
vontade e se mostrar afetuoso”.
Podia ignorar o que era dito... Ou simplesmente
ouvir. Principalmente porque o procurador passou a falar a respeito de algo sobre
o qual “vinha refletindo”, a alma do acusado.
Leia: “O
Estrangeiro”. Editora Abril.
Um
abraço,
Prof.Gilberto