Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus-do.html antes
de ler esta postagem:
Meursault
acomodou-se à prisão e às proibições impostas. Não poderia dizer que se
sentisse “muito feliz”, mas também não se sentia “muito infeliz”. Em relação a
“matar o tempo”, passou a exercitar a imaginação com recordações de sua
existência anterior...
Logo no começo de sua experiência, imaginava que estava no quarto de
casa e “partia de um canto” para percorrer o aposento. Mentalmente, enumerava
“tudo o que encontrava pelo caminho”. Fazia isso por um breve tempo, mas
conforme repetia o exercício conseguia se lembrar mais dos móveis, seus
detalhes e objetos. Conforme se familiarizava com a dinâmica, se concentrava
nos detalhes de cada objeto (cor, trincas, qualidade e conservação). E foi
assim que passou a elaborar um “inventário mental” detalhadamente enumerado.
Depois de algumas semanas,
o rapaz se viu passando várias horas “só a catalogar tudo o que havia em seu
quarto”. E quanto mais pensava, mais conseguia resgatar “coisas esquecidas da
memória”. Convenceu-se de que até mesmo um homem que tivesse “vivido um único
dia, poderia passar cem anos na prisão”, pois bastaria engajar-se num exercício
de memória como o que havia iniciado.
(...)
Meursault considerou que havia alcançado um trinfo com
aquela história de “matar o tempo” com a imaginação... Achava mesmo que aquilo
lhe proporcionara uma “vantagem”. E isso porque conseguiu superar também a
insônia.
Nos primeiros dias dormia muito mal à noite. Durante o dia não conseguia
dormir nem um pouco. Mas o seu exercício de memória fez com que aos poucos as
noites se tornassem menos pesarosas... E também os dias.
Adaptou-se de tal modo que passou a dormir de dezesseis
a dezoito horas. Assim, as outras seis horas restantes eram reservadas para
necessidades naturais, refeições, recordações “e a história do tchecoslovaco”.
(...)
Aconteceu que Meursault encontrou algumas páginas de jornal antigo sob o
surrado colchão da cama. O papel estava amarelecido e “quase colado ao tecido”.
Concentrou-se na parte impressa e conseguiu ler a respeito de uma matéria sobre
um ocorrido na Tchecoslováquia. Apesar de faltar o começo, interessou-se
bastante pelo conteúdo.
A história girava em torno de um homem simples, habitante de aldeia, que
deixou o lugarejo para tentar “fazer fortuna” em outra paragem... Depois de
vinte e cinco anos, tendo atingido o seu objetivo, decidiu regressar para apresentar
sua esposa e filho aos antigos familiares.
O caso é que a velha mãe e
uma sua irmã possuíam hospedaria na aldeia e a dirigiam. O tipo quis fazer uma
surpresa para as duas e resolveu deixar a esposa e o filho em outra estalagem.
Ele logo percebeu que não foi reconhecido e quis fazer uma brincadeira com a
intenção de, no dia seguinte, causar grande surpresa. Então deu entrada como
hóspede forasteiro e mostrou grande quantidade de dinheiro às duas.
Porém, quando anoiteceu a
mãe e a irmã o assassinaram a golpes de martelo para se apropriarem da
dinheirama. Depois livraram-se do cadáver atirando-o ao rio.
No
dia seguinte, a esposa do desafortunado apareceu na hospedaria e anunciou a identidade
dele.
Obviamente a mãe e a irmã entenderam que estavam protagonizando uma
tragédia. Então, amargurada, a velha se enforcou... A irmã jogou-se num poço.
(...)
De posse da desgastada folha
de jornal, Meursault lia a mesma história inúmeras vezes. Eventualmente pensava
a respeito e a considerava “inverossímil”, mas também “natural”. Formou um
juízo a respeito e achava que o tipo tchecoslovaco merecera aquele final, já
que “nunca se deve brincar com essas coisas”.
As muitas horas de sono, os exercícios de recordação,
as leituras do jornal “e a alternância da luz e da sombra” contribuíam para que
o tempo na prisão se passasse sem que ele percebesse.
Ele já havia lido algo sobre a “perda da noção do tempo” entre os que são
mantidos prisioneiros. De sua parte, graças à sua experiência, podia dizer que
não concordava e que aquela deia não fazia sentido. Não conseguia “relativizar”
e assim não podia entender como “os dias podiam ser ao mesmo tempo curtos e
longos”. Os dias se sobrepõem uns aos outros e “perdem seus nomes”. Para ele, o
que ainda conservava algum sentido eram “ontem, amanhã”...
Certo dia, o guarda lhe disse que fazia cinco meses
que estava preso. Meursault acreditou, mas não compreendeu, pois para ele os
dias eram “sempre o mesmo” e seus “afazeres” eram sempre os mesmos, “sem cessar”.
Assim que o guarda se retirou, resolveu olhar-se
“ao espelho na bacia de esmalte”. Ele viu que sua fisionomia se mantinha séria
até “quando tentava sorrir”. Agitou-se diante do reflexo, “mas a imagem
conservou o mesmo ar severo e triste”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus-ninguem.html
Leia: “O
Estrangeiro”. Editora Abril.
Um
abraço,
Prof.Gilberto