Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus_24.html antes
de ler esta postagem:
O
presidente disse que Meursault precisaria especificar a motivação que o levara
a assassinar o árabe... O rapaz pôs-se a falar rapidamente, demonstrou
ansiedade e isso o levou a misturar palavras sem conexão lógica.
Percebeu que fazia um papel ridículo, mas sabia que não tinha outra
justificativa, então disse que “por causa do sol” assassinara o árabe.
Alguns risos foram
percebidos em meio à audiência... O da defesa simplesmente encolheu os ombros enquanto
o chamavam para se manifestar. Visivelmente preocupado, explicou que as horas
haviam avançado bastante e que necessitaria de um bom tempo para fazer sua
explanação. Assim, solicitou o adiamento da sessão para mais tarde e teve seu
pedido acatado.
(...)
Conforme havia sido definido, o tribunal se reuniu
novamente à tarde... O calor continuava intenso e por isso os grandes
ventiladores permaneceram a plena rotação. Os jurados mostravam ansiedade e,
sem abandonar os leques, mantinham-se firmes em suas posições enquanto ouviam o
longo discurso do advogado que fazia a defesa do Meursault.
O homem adotou o recurso de apresentar justificativas e motivações em
primeira pessoa, como se fosse o próprio réu. Desse modo, iniciava frases como “é
certo que matei”, “eu isso”, “eu aquilo”. Meursault não escondeu sua admiração
e chegou a perguntar a um dos policiais qual era o motivo daquele procedimento.
O tira ordenou que se calasse e na sequência afirmou que “todos os advogados
fazem o mesmo”.
De qualquer modo, o rapaz sentiu que aquela estratégia
o afastava ainda mais do caso. Sentia-se reduzido “a zero” na questão e como
que substituído pelo outro. Ao mesmo tempo em que se sentia distanciado da
realidade do tribunal, ouvia nitidamente a falação do advogado e só podia classificá-la
como ridícula.
Essa sensação aumentou conforme o defensor passou a tratar da alma do réu...
Evidentemente usou a estratégia do procurador, mas via-se que lhe faltava o
mesmo talento. No início manifestou:
“Também eu me
debrucei sobre esta alma, mas ao contrário do eminente representante do
Ministério Público, encontrei alguma coisa e posso dizer que li como num livro
aberto” (...)
E o que havia lido na alma
do Meursault? Que ele se tratava de “um bom homem, trabalhador metódico,
infatigável, fiel ao escritório que o empregava, amado por todos, enfim, alguém
que participava da miséria dos outros”.
Disse mesmo que o rapaz era
“um filho modelo” que se dedicara a sustentar a mãe até o limite de suas
possibilidades. Encaminhou-a à “casa de recolhimento” na esperança de que ela
lhe concedesse o conforto que seus próprios meios não podiam garantir.
Ainda
a respeito do asilo, o advogado observou:
“Muito me espanto que
tenham feito tanto barulho em volta desse asilo. Porque, afinal, se fosse
preciso dar uma prova da utilidade e da grandeza destas instituições, teríamos
que acentuar que são subvencionadas pelo próprio Estado”.
(...)
No prosseguimento de sua
explanação, o advogado não fez qualquer referência ao enterro da mãe e ao
comportamento estranho do réu... Meursault sentiu que aquilo evidenciava uma “lacuna
da defesa”, mas não se dedicou a maiores reflexões a respeito porque já estava
bem cansado do processo e das longas horas de falação a respeito de sua alma.
Era tudo muito angustiante, e aquele teatro provocava
vertigens no rapaz. Por isso mesmo dedicou-se a prestar atenção aos sons que
vinham desde o lado externo... O advogado continuou a falar, mas ele se atentava
à buzina do vendedor de sorvetes e aquilo o fez lembrar de uma “vida que já não
lhe pertencia”, marcada por alegrias simples: “os odores do verão, o bairro que
tão bem conhecia, o céu da noite, Maria e seu sorriso e vestidos”.
Não foi por acaso que ele desejou que tudo ali se apressasse para que
pudesse retornar à cela, onde passaria mais uma noite. Foi de repente que
voltou a prestar atenção à falação de seu advogado que aos gritos finalizava
com frases dirigidas diretamente aos jurados... Advertia-os de que certamente
não pretenderiam “condenar à morte um trabalhador honesto, perdido por um
minuto de desvario”.
O homem concluía que o crime devia ser analisado a
partir de “circunstâncias atenuantes” e que já era mais que evidente que o réu
levaria para todo o sempre o “remorso eterno” como o pior dos castigos.
(...)
Depois o tribunal suspendeu a sessão...
O advogado deixava transparecer o cansaço dos que
cumpriram uma difícil missão. Assim que se sentou, outros que também exerciam o
ofício se dirigiram a ele para os merecidos cumprimentos. Podia-se ouvir que tinham
aprovado seu desempenho... “Esplêndido, meu caro”, era o que mais se dizia. Um
dos tipos dirigiu-se ao Meursault como que a pedir-lhe a opinião.
O rapaz balançou a cabeça como que a assentir,
mas ele mesmo sabia que não estava sendo sincero, já que suas reflexões eram
sobre a própria fadiga.
Leia: “O
Estrangeiro”. Editora Abril.
Um
abraço,
Prof.Gilberto