terça-feira, 22 de junho de 2021

“O Estrangeiro”, de Albert Camus – o procurador vincula a postura de Meursault durante o enterro da mãe a uma mente criminosa; o advogado de defesa não consegue afrontar os ataques da acusação; suspensão da sessão e retorno à prisão; reflexões sobre fragmentos do entardecer e início da noite enquanto percorre caminhos que antes eram feitos em liberdade; da quase nenhuma diferença entre os discursos de acusação e defesa

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/06/o-estrangeiro-de-albert-camus.html antes de ler esta postagem:

O procurador devia iniciar sua falação com considerações e perguntas ao Raimundo Sintés. Começou dizendo que pouco tinha a acrescentar, e com isso parecia querer passar para os jurados e a todos os que acompanhavam o interrogatório que já tinham ouvido bastante a respeito da índole da testemunha e sua proximidade com o réu.
Ao Sintés, o procurador perguntou se era amigo de Meursault. Ele respondeu afirmativamente, então a pergunta foi dirigida ao réu, que também afirmou ser amigo do que testemunhava.
Na sequência, o procurador virou-se para os jurados e pronunciou:

                   “O mesmo homem que, um dia depois da mãe ter morrido, se entregava à mais vergonhosa devassidão, matou por razões fúteis e para liquidar um inqualificável caso crapuloso”.

(...)
O procurador sentou-se novamente. Certamente estava convencido de que conseguiria a adesão dos jurados à sua tática de relacionar o assassino à devassidão.
O advogado da defesa mostrou-se agitado e impaciente. Gritou e levantou os braços. Meursault notou que o gesto do tipo escancarou a todos “as pregas de sua camisa engomada” enquanto perguntava se estavam acusando o réu de assassinato ou de ser culpado pela morte da mãe.
Parte do público riu... O procurador levantou-se novamente e com muita seriedade pronunciou “que era preciso ter a ingenuidade do ilustre defensor para não sentir que entre as duas ordens de fatos, havia uma relação profunda, patética, essencial”. Depois vociferou:

                   “Sim, acuso este homem de ter assistido ao enterro da mãe com um coração de criminoso”.

Pelo visto, tanto os jurados quanto os que acompanhavam as discussões acataram a tese do acusador... O da defesa pareceu sentir o golpe. Meursault notou sua impaciência quando “encolheu os ombros e limpou o suor que lhe cobria a testa” e concluiu que o desenrolar da sessão não lhe era nada favorável.
(...)
O presidente suspendeu a audiência...
Enquanto era conduzido ao veículo que o levaria à prisão, Meursault observou alguns “fragmentos da tarde de verão”: procurou reter de alguma maneira as fragrâncias, o calor, os ruídos da cidade... Tudo isso ele conhecia bem e lembrou-se que muitas vezes havia ficado contente por passear livremente pelas ruas. Sentiu um aperto no coração, sabia que nas praças ouviam-se o canto dos últimos pássaros, o grito dos vendedores de jornais e dos que vendiam lanches... Bondes conduziam passageiros ávidos para chegarem às suas casas antes que a noite caísse. A escuridão logo baixaria também sobre o porto...
Meursault conhecia bem os locais e sabia que a prisão fizera romper uma existência tranquila. Antes, o seu caminhar de volta para casa o levava para os “sonos ligeiros e sem sonhos”. A condução ao presídio após o dia de interrogatórios o fizera pensar sobre tudo isso...
O amanhecer do dia seguinte não lhe trouxe nada de reconfortante... Em vez disso, a cela e, em breve, nova condução à sala de audiências. Lamentavelmente podia confirmar que “os caminhos familiares traçados nas noites de verão podiam conduzir, tanto às prisões, como aos sonos inocentes”.

(...)

Meursault refletiu a respeito de sua condição de réu... Não podia deixar de considerar interessante a falação a respeito dele. Entendia que as intervenções, tanto do procurador quanto do advogado de defesa, tinham como tema a pessoa dele, falavam muito a seu respeito... Muito mais do que sobre o crime que havia cometido.
Seria o caso de pensar se havia alguma diferença significativa no discurso de cada um... O rapaz não carregava qualquer ilusão e sabia que tanto um quanto o outro consideravam-no culpado. O da defesa salientava que havia atenuantes; o da acusação discordava e sustentava que não.
O rapaz gostaria de intervir nas discussões, mas o advogado que o defendia adiantava-se a exigir que se calasse “para o seu próprio bem”.
Leia: “O Estrangeiro”. Editora Abril.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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