Toda preocupação em relação aos castigos
desonrosos tinha a ver com uma nova visão do “conceito de honra”... Conforme os
direitos humanos se tornavam consensuais e eram enxergados a partir de uma
noção mais universalista, o entendimento tradicional sobre a honra foi
afrontado.
Tradicionalmente via-se a
honra como a principal “qualidade pessoal” da monarquia. Em “O Espírito das
Leis”, Montesquieu sentenciava que a “honra era o princípio inspirador da
monarquia como forma de governo”. Para muitos, a honra era algo que se podia
atribuir apenas aos que pertenciam à aristocracia. Talvez não tenha sido por
acaso que Robespierre questionasse o costume de se desonrar famílias inteiras
relacionando-o aos equívocos sobre a “noção de honra” durante o Antigo Regime.
Em seu ensaio crítico dos castigos desonrosos afirmou que:
“Se
consideramos a natureza dessa honra, fértil em caprichos, sempre inclinada a
uma excessiva sutileza, frequentemente apreciando as coisas pelo seu glamour e
não pelo valor intrínseco e os homens pelos seus acessórios, títulos que lhes
são alheios, e não pelas suas qualidades pessoais, podemos facilmente
compreender como ela (a honra) podia entregar ao desprezo aqueles que têm como
ente querido um vilão punido pela sociedade”.
Robespierre também se
colocou contra a exclusividade da decapitação (sentenciamento tido como mais
honroso) aos nobres... Daí cabe a pergunta se ele pretendia que todos fossem
considerados igualmente honrados ou se considerava que o antigo conceito de
honra devia ser alterado ou renunciado.
A verdade é que antes mesmo
dos anos 1780 as definições de honra passavam por alterações. O livro cita a
edição de 1762 do Dicionário da Académie Française que vinculava a honra aos
termos “virtude e probidade”. Ao se referir às mulheres, o verbete era
relacionado à “castidade e modéstia”.
Verifica-se que, depois de
1750, a qualidade da pessoa honrada determinava uma distância muito grande
entre homens e mulheres... Mais até do que entre os aristocratas e comuns. A
honra passava a se relacionar cada vez mais à virtude, que se atribuía aos
homens. Para Montesquieu, as repúblicas seriam modelos políticos que, por
excelência, podem levar seus cidadãos à virtude... Esses seriam honrados na
medida em que praticassem a virtude.
Com a Revolução Francesa, o
nascimento deixou de ser prerrogativa da honra... As ações passaram a levar as
pessoas a serem mais ou menos honradas. Mudou também a distinção entre homens e
mulheres... Antes havia a conduta específica de cada gênero determinando sua
honra; a partir da Declaração de 1789 as questões próprias do exercício de
cidadania, assim como as formas das punições, passaram a marcar o status
diferenciado dos homens em relação às mulheres.
Para as mulheres, a honra
(e por consequência a virtude) se circunscrevia à sua vida privada/doméstica...
A vida pública (e o exercício correto dos direitos) determinava a honra dos
homens virtuosos.
Homens e mulheres podiam sofrer a desonra quando punidos, todavia, como
vimos anteriormente, só os homens perdiam direitos políticos. Os homens
aristocratas e os comuns se tornaram iguais em relação às punições e aos
direitos... As mulheres continuaram a ser tratadas de modo desigual.
Em 1794, o poeta, jornalista e membro da Academia Francesa,
Sébastien-Roch Nicolas Chamfort satirizou as mudanças a respeito das definições
de honra em seu tempo:
“É uma verdade reconhecida
que o nosso século tem posto as palavras no seu lugar: ao banir sutilezas
escolásticas, dialéticas e metafísicas, ele retornou ao simples e verdadeiro na
física, na moral e na política. Falando apenas da moral, percebe-se o quanto
esta palavra, honra, incorpora ideias complexas e metafísicas. O nosso século
sentiu os inconvenientes dessas ideias e para trazer tudo de volta ao simples,
para impedir todo abuso de palavras, estabeleceu que a honra permanece integral
para todo homem que nunca foi um ex-condenado. No passado essa palavra foi uma
fonte de equívocos e contestações; no presente, nada poderia ser mais claro. O
homem foi colocado no colarinho de ferro ou não? Essa é a pergunta a ser feita.
É uma simples pergunta factual que pode ser facilmente respondida pelos
registros do escrivão do tribunal. Um homem de honra que pode reivindicar
qualquer coisa, cargos no ministério etc. Tem ingresso garantido nas
corporações profissionais, nas academias, nas cortes do soberano. Percebe-se
como a clareza e a precisão nos poupam de brigas e discussões, e como o
comércio da vida se torna conveniente e fácil”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/06/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_21.html
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto