Como vimos, após a aprovação da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, os franceses emplacaram a abolição da tortura
nos processos judiciais. No dia 10 de setembro, entre os parisienses não se
falava em investir nos argumentos na defesa de tal medida... Mas aconteceu que
os deputados quiseram aproveitar a ocasião e incluí-la de imediato na reforma
do código criminal.
A revisão do código
se deu um ano e meio depois... Então o deputado que fez a apresentação da
proposta resgatou os antigos argumentos que afloravam desde os primeiros
debates contra a tortura e as punições vexatórias. A 23 de maio de 1791, Louis-Michel
Lepeletier de Saint-Fargeau, que havia sido presidente do Parlamento de Paris,
foi à tribuna e apresentou os princípios e fundamentações do “Comitê sobre a
Lei Criminal”, que era uma espécie de continuação do “Comitês dos Sete” formado
em setembro de 1789. O outrora juiz vociferou contra o que chamou de “torturas
atrozes imaginadas em séculos bárbaros e ainda assim conservadas em séculos
esclarecidos”... Além disso, denunciou o exagero da aplicação de certas
punições e a “ferocidade geralmente absurda” no sentenciamento de crimes
comuns. Tudo isso era legado de leis antigas e “ultrapassadas”.
Postagens anteriores mostraram que a crítica exposta por Louis-Michel
Lepeletier de Saint-Fargeau era uma das principais reclamações contidas nos
textos de Beccaria. Para o deputado, o código penal que deviam aprovar se
baseava em “princípios de humanidade” que teria por prerrogativa a “reabilitação
por meio do trabalho” dos condenados judicialmente. O suplício e a dor não
seriam mais tolerados enquanto expedientes punitivos.
(...)
O
tema era tão caro aos membros do comitê que as questões da tortura e da punição
foram pautadas antes mesmo “da seção que definia os crimes no novo código penal”.
Onde quer que existam
sociedades humanas haverá delitos... Obviamente as punições aos culpados têm a
ver com a política pública em vigor. O comitê apresentou à assembleia uma
proposta de revisão total do sistema jurídico-penal da França e, assim,
esperava-se que os novos procedimentos repercutissem os valores cívicos impulsionados
pela Revolução.
Já
que faziam a defesa da igualdade entre os cidadãos, só podiam aceitar que “todos
seriam julgados pelos mesmos tribunais sob a mesma lei e seriam suscetíveis às
mesmas punições”. A partir de então, perder a liberdade se tornava punição
exemplar... Antes acontecia de enviarem condenados às galés em alto mar e para
o exílio. Esse tipo de punição não resultava em qualquer “significância” aos
demais cidadãos, pois o punido era afastado da visão pública para cumprir a
pena em outro lugar.
O comitê debateu e
chegou a defender a eliminação da pena de morte, excetuando os “casos de rebelião
contra o Estado”... Todavia sabia-se que o tema era dos mais delicados para os
demais membros da Assembleia. Por fim a votação estabeleceu que a pena de morte
poderia ser aplicada a certos crimes. Os casos de heresia, sacrilégio ou magia
deixaram de ser punidos pela pena capital... A sodomia, que no passado podia resultar
em condenação à morte, deixou de ser considerada crime.
Os
casos de condenação à morte passaram a ser executados pela decapitação. No passado
esse expediente era reservado apenas aos nobres, pois julgava-se que se tratava
de morte menos dolorosa. A guilhotina foi inventada no final da década de 1730 para
aliviar as execuções, e tornou-se equipamento reconhecido pela França
Revolucionária em abril de 1792.
O suplício da roda ou
a morte na fogueira desapareceriam com o novo código. O mesmo Lepeletier insistiu
que:
“Todos
esses horrores legais são detestados pela humanidade e pela opinião pública” (...)
“Esses espetáculos cruéis degradam a moral pública e são indignos de um século
humano e esclarecido”.
Uma vez que investiam na reabilitação dos criminosos e seu reingresso na
vida em sociedade, os deputados refutaram também as punições baseadas em
mutilações e “marcas de ferro em brasa”. Haveria quem insistisse que os sinais marcados
a ferro em brasa nos criminosos fariam falta, já que eram sinais permanentes
que indicavam o status das pessoas perigosas.
Mais
uma vez Lepeletier explicou que “na nova ordem” os vagabundos e delinquentes
não deixariam de ser reconhecidos “porque as municipalidades manteriam
registros exatos com os nomes de cada habitante”. E salientou que a marca
permanente era um empecilho para que retornassem à sociedade. O objetivo da
punição, ainda segundo Lepeletier, seria a readaptação dos condenados... Assim,
ela não devia ser degradante em nenhuma hipótese.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/06/a-invencao-dos-direitos-humanos-uma_14.html
Leia: A
Invenção dos Direitos Humanos. Companhia das Letras.
Um abraço,
Prof.Gilberto