Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-os-imundos-e.html antes
de ler esta postagem:
Ao ver o velho entrando no bar àquela hora da
noite, Winston pensou que ele devia trazer memórias da época anterior à
Revolução... Se entre os membros do Partido não se podia encontrar quem tivesse
vivido as primeiras décadas do século, sem dúvida entre os proles havia tipos
como aquele que trazia no semblante os traços do passado.
Então, no mesmo
instante, lembrou-se dos trechos do livro que havia conseguido com a Senhora
Parsons e resolveu entrar no bar para conversar com o velho. Pensou em
perguntar-lhe a respeito da vida ao tempo em que era ainda um menino, se a
situação era melhor ou pior do que a vida que levavam no momento. Para não
correr o risco de maiores vacilações, desceu rapidamente a escadaria e
atravessou a rua para alcançar o bar.
Até onde sabia, não havia nenhuma regra que impedisse a conversa de
membros do Partido com proles, e tampouco em relação a frequentar os seus bares...
Todavia a iniciativa não era usual e, por isso mesmo, chamava a atenção.
Poderia ser flagrado por alguma patrulha. Pensou que nesse caso diria qualquer
coisa relacionada a um mal-estar e que, por falta de alternativa, tivera de se
refugiar no bar dos proles para se recompor. Pensou nessa desculpa sem qualquer
esperança de ser aceita pelos agentes da lei...
(...)
Winston
avançou para a porta do bar e assim que a abriu sentiu-se inebriado pela
atmosfera impregnada do cheiro de queijo e cerveja azeda... Assim que entrou, o
vozerio diminuiu significativamente.
Notou que a um canto
havia bebedores que se divertiam atirando dardos num alvo. Deu alguns passos e
pressentiu que o examinavam pelas costas. Também os que brincavam com os dardos
pararam o jogo por alguns segundos... Certamente seu macacão azul chamava a
atenção de todos os presentes.
Não
demorou e localizou o velho que havia entrado antes dele. O homem estava
discutindo com o jovem proprietário do bar, que atendia os fregueses
diretamente no balcão. Como não podia deixar de ser, também esse diálogo era
carregado por vícios de linguagem, erros gramaticais e regionalismo. Winston
entendeu que o velho reclamava que o rapaz não entendia o seu pedido, “uma
caneca de pinta”.
O dono do bar se
mostrava irritado... O velho não deixava por menos, tanto é que disparou:
“Oia só ele! Botequineiro
que nem sabe o que é pinta! Ué, uma pinta é a metade duma quarta, e tem quatro
quartas no galão. Daqui a pouco tenho que te ensiná o abc!”
Ao seu modo, o rapaz respondeu que nunca tinha ouvido falar daquela
“medida”. “Nunca escuitei falá nisso”, foi o que disse, e emendou que em seu
botequim servia “litro e meio” nas canecas que estavam expostas no próprio
balcão.
O velho insistia que gostava de “pinta”, era o que queria... Deixou
claro que no tempo em que era moço não havia aquela “besteira de litro” que o
outro vendia. O rapaz quis dar uma resposta que evidenciasse a condição
ridícula e ultrapassada do velho e respondeu que ele falava de tempos em que “nós
todos morava trepado nas arve”.
De fato, todos os que ouviram passaram a
gargalhar... Nesse momento já não prestavam atenção ao macacão azul que se
intrometera na bodega... O velho tronou-se avermelhado de vergonha e pôs-se a
retirar balbuciando qualquer coisa... No caminho tropeçou em Winston.
(...)
O incidente não podia
ter sido mais propício às intenções de Winston, que segurou com delicadeza o
braço do homem... Ofereceu-lhe uma bebida.
O velho agradeceu, chamou-o de “cavalheiro” sem demonstrar qualquer
espanto com o macacão azul. Na sequência dirigiu-se ao balcão e exigiu “uma
pinta da boa”. O pedido foi atendido imediatamente... O rapaz enxaguou dois
canecos num balde que ficava sob o balcão e serviu “dois meios-litros” de uma
cerveja de coloração marrom escura.
Ali
e em qualquer outro bar da área dos proles só serviam cerveja. Não havia
permissão para servir gin, apesar de não ser difícil a sua obtenção. Apesar
disso, os frequentadores não tinham reclamações... Winston notou que a animação
do jogo de dardos e as conversas sobre a Loteria foram retomadas e ninguém mais
fazia caso de sua presença.
Viu
uma mesa vaga junto a uma janela... A posição não era das melhores, todavia não
havia nenhuma teletela instalada no bar e ali poderia conversar sossegadamente
com o velho. Assim que se sentou, este foi logo dizendo que o moço podia ter
servido a “pinta” sem maiores problemas. Quis justificar a sua implicância ao
desconhecido e emendou que meio litro é pouco, pois “não satisfais”; mas “um
litro é muito” e, além de fazer a “bixiga trabalha”, custa caro.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto