terça-feira, 31 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – a moça conseguia adivinhar o modo de ser de Katherine mesmo sem a ter conhecido; a formação das jovens a partir da doutrinação do Partido em defesa da castidade; privação em benefício do fanatismo ideológico; fomentando o instinto de paternidade e a integração das crianças ao programa de repressão política; relembrando o episódio em que, depois de se apartarem de grupo de passeio, teve oportunidade de atirar a esposa ao fundo de um abismo

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-tendo-trabalhado.html antes de ler esta postagem:

Logo no início da conversa a respeito de Katherine, Winston admirou-se com a rapidez de Júlia ao tirar conclusões certeiras... Como a jovem podia saber até mesmo aquele detalhe a respeito da “relação enquanto dever para com o Partido”?
Ela foi explicando que “também estivera na escola” e que as “maiores de dezesseis” tinham “aulas de sexo uma vez por mês”, além disso, o Movimento Juvenil tratava de completar a doutrinação sexual das garotas durante longos anos. A maioria delas seguia as orientações à risca, e esse certamente era o caso de Katherine, mas Júlia podia dizer que sempre há as que apenas disfarçam.
Ela falou a respeito, pois tinha experiência e opinião, já que “tudo girava em torno da própria sexualidade”. Winston reconheceu que, melhor do que ele, Júlia havia percebido “o sentido íntimo do puritanismo sexual do Partido”. O Partido simplesmente não podia controlar as muitas intencionalidades que derivavam do instinto sexual e por isso trabalhava para destruí-lo, além de impor a privação “que provocava a histeria” canalizada para “a febre guerreira e adoração dos chefes”.
Ainda de acordo com Júlia, as relações baseadas no amor consomem energia, mas levam a uma satisfação desprendida de qualquer preocupação... Naturalmente o Partido não admitia que as pessoas se sentissem assim, já que pretendia que todos estivessem a ponto de “estourar de energia”, e a todo momento... De fato, os intermináveis desfiles, a adoração ao Grande Irmão, “os Planos Trienais e os Dois Minutos de Ódio” se encaixavam nessa observação e eram tão mais exagerados quanto mais as pessoas fossem sexualmente reprimidas.
E ela disse mais... Argumentou que quando o sujeito está satisfeito e feliz consigo mesmo não vê motivos para se envolver com toda aquela “maldita burrice”.
(...)
Winston acabou concordando que “havia uma ligação direta e íntima entre a castidade e a ortodoxia política”. Pensou que, em outras palavras, o Partido eliminava o instinto sexual e desse modo incutia “medo, ódio e credulidade lunática” nos seus membros.
Também o instinto da paternidade foi manipulado pelo Partido... Por motivos óbvios, a família não era abolida, e os pais eram levados a uma dedicação amorosa aos seus filhos. Por sua vez, estes recebiam a doutrinação partidária para espionar os pais e denunciar seus crimes.
Podemos dizer que cada família acabava se tornando, na figura das crianças doutrinadas, “uma extensão da Polícia do Pensamento”. Onde podiam encontrar delatores mais eficientes do que entre as crianças?
Este raciocínio, e ainda o calor que estava fazendo, levaram-no a pensar novamente em Katherine. Para ele, era certo que o denunciaria, e só não o fez porque sua limitação intelectual não lhe permitira reconhecer “a heresia dos pensamentos”.
(...)
Ele decidiu contar à Júlia a respeito de uma ocasião em que estivera com Katherine num passeio comunal em Kent, quando fazia uns três ou quatro meses que estavam casados... A tarde era de muito calor e acabaram se perdendo do grupo.
Ao tomarem caminho diverso, acabaram chegando num precipício à beira de uma mina de calcário antiga. O local era perigoso e qualquer deslize podia resultar em queda de uns dez ou vinte metros sobre rochas imensas... E o caso é que o local estava deserto, assim não havia a quem pudessem consultar para reencontrar o pessoal.
Tudo indicava que tinham se perdido, então Katherine ficou nervosa também porque julgou que haviam feito mal ao se separarem do grupo apenas porque o mesmo era muito ruidoso. Ela sugeriu retornarem às carreiras por determinada trilha, mas no mesmo momento ele havia notado umas flores que despontavam numas fendas do rochedo. As flores deviam ser bem raras, já que da mesma raiz surgiam duas belas colorações (“maravilha e tijolo”). Sua reação foi chamar a esposa para que também pudesse contemplá-las.
Sua curiosidade a fez voltar da trilha que estava disposta a seguir, e até a se inclinar perigosamente sobre a grande rocha para observar melhor. Winston contou que sua primeira reação foi a de segurá-la pela cintura para que não se acidentasse... Mas depois considerou que estavam sós no ambiente e que dificilmente haveria ali um microfone dos aparelhos de repressão; e mesmo se houvesse capturaria apenas sons.
O calor era insuportável e chegava a provocar sonolência. Ele explicou que sua testa “estava banhada em suor” assim como no momento mesmo em que conversavam na torre da igreja, e que lhe passou pela cabeça uma ideia... Antes que terminasse a frase, a garota perguntou-lhe por que não empurrara Katherine para o precipício. E emendou que em seu lugar teria feito isso mesmo.
Winston respondeu que tinha certeza de que ela o faria... Explicou que também ele, se fosse naquela ocasião “a pessoa que havia se tornado tempos depois”... Mas podia ser que não tivesse a coragem.
Júlia quis saber se ele lamentava por não a ter empurrado numa oportunidade tão propícia. Sim, ele afirmou que “de certo modo, foi uma pena”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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