quinta-feira, 5 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – um livro escolar de História emprestado pela senhora Parsons; conteúdo didático a respeito da vida anterior à gloriosa revolução; uma realidade que destoava do que era ensinado; propaganda grandiosa para uma gente de cotidiano miserável

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-um-grande.html antes de ler esta postagem:

Para quem pretendesse refletir sobre a realidade marcada pelo poder extremado do Partido e constante vigilância do Grande Irmão, como era o caso de Winston, sobravam interrogações... O rapaz até se esquecia da incômoda variz ulcerada quando se dedicava a encontrar respostas para o que havia sido a vida antes do advento do IngSoc.
Ele havia conseguido um livro didático de História com a Sra. Parsons e o mantinha na gaveta da mesa. Depois de aliviar a comichão provocada pela variz, retirou o material escolar e copiou um fragmento em seu diário.
(...)
Resumidamente, o trecho dizia que “antes da Revolução” a cidade de Londres não era nada parecida com o que ela havia se transformado. Durante o tempo passado, e superado pela Revolução, Londres era uma cidade escura, “onde pouca gente tinha bastante que comer e onde centenas e milhares de pobres não tinham calçado nem abrigo onde dormir”.
O texto dizia que imperava a vida miserável. E como se tratava de um material escolar dirigido às crianças, dialogava com elas de forma direta... Sobre a péssima condição dos pequenos ao tempo anterior à “Gloriosa Revolução”, transmitia aos estudantes que os que tinham mais ou menos a mesma idade deles “tinham de trabalhar doze horas por dia, para patrões cruéis, que as castigavam com chicotes quando trabalhavam muito devagar e não lhes davam senão côdeas de pão velho e água”. E a grande contradição que devia chocar os pequenos estudantes ficava por conta da informação a respeito de “umas poucas casas belíssimas habitadas pelos ricos, que tinham até trinta criados para cuidar deles”, isso em meio à triste realidade vivida pelos mais pobres.
O livro ensinava que os ricos eram os capitalistas, tipos “gordos, feios, de caras perversas”. A página seguinte apresentava uma ilustração e um texto que auxiliava na interpretação:

                   “repara que veste um grande casaco negro, chamado fraque, e um chapéu estranho, brilhante, como uma chaminé truncada, e que se chamava cartola. Era esse o uniforme dos capitalistas e ninguém mais podia usá-lo”.

Ainda a respeito dos capitalistas, o livro ensinava que tudo o que existia (terras, casas, fábricas, dinheiro) pertencia a eles. Os demais, que não eram capitalistas, eram escravizados. Desobedecer a um daqueles poderosos poderia significar prisão, perda do sustento e a consequente morte lenta “pela fome”.
Os capitalistas eram os senhores e deviam ser tratados com toda reverência pelos comuns, que tinham “de se encolher, se inclinar, tirar o boné”. O maior dos capitalistas era o “Rei”.
Winston interrompeu neste ponto... Sabia tudo o mais que vinha na sequência: bispos e suas imponentes indumentárias; juízes com suas capas e instrumentos de execução; nobres, seus privilégios e celebrações...
Ele sabia por antigas fontes de costumes que certamente não constariam de livros para crianças... Era o caso do “jus primae noctis”, ou o direito que os capitalistas tinham de dormir com qualquer operária de suas fábricas...
(...)
Havia alguma verdade no meio das informações? Talvez nem tudo ali fosse mentira e bem podia ser que as pessoas comuns estivessem vivendo melhor do que antes do advento do IngSoc. Pelo menos de sua parte havia a convicção de que as condições não eram nada boas, intoleráveis mesmo, e que deviam ser bem diferentes.
Era necessário pensar melhor na vida que se levava. O que havia de típico não eram a crueldade ou a insegurança, mas sim a miséria, o desânimo, a mudez. Não se via na realidade nada do que os pronunciamentos da teletela anunciavam... E mais que isso, a vida das pessoas não condizia com “os ideais que o Partido buscava atingir”.
O cotidiano delas, e Winston sabia bem a respeito da condição dos que pertenciam ao Partido, era marcado por atividades mesquinhas e “neutras”, marcadas por afazeres tediosos... E no mais, era a constante batalha por “um lugar nas composições do metrô”, remendar meias, conseguir um pouco de açúcar ou conservar um resto de cigarro já fumado pela metade.
Tudo isso era bem diferente do que o Partido propagava, uma realidade idealizada em que as pessoas viviam em meio a máquinas e aparelhos robustos, de aço... Tudo grandioso e assustador, elaborado para uma nação guerreira e fanática pelos mesmos fundamentos incutidos pela liderança... Trezentos milhões! Todos prontos para uma marcha sincronizada e marcada pelas palavras de ordem. A luta aguerrida seguida por vitórias rumo ao triunfo definitivo.
Bonito de se ouvir, emocionante e até convincente, mas o que prevalecia eram as cidades escurecidas e em ruinas. E por todo lado a gente miserável e esfomeada perambulando “com sapatos furados, vivendo em remendadas casas do século anterior e que sempre cheiravam a repolho e latrinas de mau funcionamento”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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