Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-realidade-como.html antes
de ler esta postagem:
Naquela ocasião no Café Castanheira, três horas
de uma tarde qualquer, Winston percebeu que não havia frequentadores nas mesas
mais próximas da que os três polêmicos personagens usavam, e na qual acomodavam
os “copos de gin com cravo”. Evidentemente não era aconselhável ser visto junto
a eles.
Rutherford, era o que
mais chamava a sua atenção... De acordo com o rapaz, o antigo ativista “era um
homem monstruoso” e de cabelos fartos, grisalhos e gordurosos. O tipo tinha os lábios
grossos num rosto avolumado pelo inchaço e carregado de cicatrizes. Via-se que
já possuíra um organismo robusto, mas no momento parecia bem fragilizado e
desprezível pelo excesso de banhas.
Winston sabia que ele havia sido famoso como caricaturista dos bons no
passado. Seus desenhos contribuíram para mobilizar a opinião pública contra a
estrutura anterior à revolução. Apesar da condição de “marcado pelo regime”, o
Times eventualmente publicava alguns de seus trabalhos.
De
um modo geral, o material trazia temática relacionada aos tempos passados: “cortiços,
crianças esfomeadas, batalhas de rua, capitalistas de cartola (até nas
barricadas os capitalistas pareciam conservar as cartolas) – um esforço infindo,
frouxo, de voltar ao passado”.
(...)
Por um momento,
Winston sentiu-se deslocado e sem saber o que o fizera ir ao Café
Castanheira... Notou que as teletelas despejavam músicas metálicas no ambiente
e que os três homens permaneciam calados na mesa. Mesmo assim, o garçom dirigia-se
a eles com frequência para servir-lhes mais gin.
No
mais, a calmaria reinava. Numa mesa ao lado “havia um tabuleiro de xadrez com
as peças arrumadas”, mas ninguém jogava. De um momento para outro as teletelas passaram
a transmitir curioso e insistente som marcado por um “meio tom” e logo uma
misteriosa voz passou a cantar:
“Sob a frondosa castanheira
eu te vendi e tu me vendeste: Lá estão eles, e aqui estamos nós, sob a frondosa
castanheira”.
Não houve qualquer
reação dos três... Winston pôde notar que Rutherford parecia entender que a
mensagem era dirigida a eles e em seus olhos acumularam-se lágrimas. O rapaz
sentiu arrepiar-se e, ao observar com mais atenção, notou que os narizes de Rutherford
e Aaronson eram quebrados.
(...)
Algum tempo se passou e eles foram novamente presos... Obviamente
anunciaram que se envolveram em novos ataques ao regime e ao Grande Irmão logo
que foram libertados. Houve novo julgamento no qual confessaram os crimes
antigos e alguns outros que “ousaram cometer”.
Depois veio a execução exemplar e os “registros nas histórias do Partido”
como material de advertência aos que teimassem em participar de insurreições.
(...)
Neste ponto precisamos retomar a lembrança de
Winston a respeito de uma “prova concreta e inegável de falsificação” que
chegou às suas mãos por volta de 1973.
Fazia uns cinco anos que Jones, Aaronson e Rutherford haviam sido
executados... Em seu compartimento de trabalho no Departamento de Registro,
Winston verificava documentos que tinham acabado de chegar pelo tubo pneumático.
Por acaso, percebeu um recorte que não fazia parte dos papéis. Certamente o fragmento
havia sido indevidamente colocado e esquecido no meio dos calhamaços.
Ele
não resistiu e abriu a “meia página de uma edição do Times” de dez anos antes.
No alto podia-se ler a data, e em destaque via-se uma “foto dos delegados numa
função do Partido em Nova York”. Jones, Aaronson e Rutherford estavam entre eles!
Seus nomes estavam na legenda!
O caso é que eles
haviam “confessado” nos dois julgamentos que, na data mesma daquele evento, estiveram
em terras eurasianas depois de partirem “de um aeroporto secreto no Canadá a um
ponto da Sibéria, onde conferenciaram com membros do Estado Maior Eurasiano”
para entregar-lhes segredos militares.
E
por que Winston sabia da data? Porque ela correspondia ao equinócio de verão...
Aquele registro devia constar de muitas outras publicações, mas evidentemente o
Ministério cuidava das retificações necessárias. Todavia o recorte não deixava
a menor dúvida para quem conhecia bem o caso: “as confissões eram falsas”.
Não
havia aí nenhuma “descoberta fabulosa”. O rapaz sequer acreditava que os
expurgados tivessem cometido os crimes pelos quais os acusavam! A questão é que
o papel se constituía numa “prova concreta” de alteração do passado, tal como
um “osso de fóssil que surge numa camada errada e destrói uma teoria geológica”.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-ainda-fotografia.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto