Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-cervejas-e.html antes
de ler esta postagem:
A conversa do velho era decepcionante demais
para Winston, que explicou que desejava saber outra coisa bem diferente...
Então foi direto ao assunto e perguntou se ele achava que o momento que viviam
era de mais liberdade do que o tempo passado, e se pensava que o tratamento que
vinha recebendo era mais humano...
Tentando se explicar
melhor, voltou a falar sobre o passado e sobre os “ricaços, os que
mandavam...”. O velho fez um esforço para se lembrar de algo e começou a dizer
qualquer coisa sabre a “Câmara dos Lordes”. Então Winston disse que ele podia
mesmo falar a respeito, pois gostaria de saber se ele era tratado como inferior
por aquela gente apenas porque eram ricos... Tinha mesmo de chamá-los de
“senhor” e “tirar o boné quando passava por eles”?
Mais uma vez o velho deu a entender que se esforçava para pensar a
respeito do que o outro lhe dizia... Tomou uma boa quantidade da cerveja e
respondeu que:
“eles gostava
que a gente cumprimentasse eles co boné”, e que isso “era siná de respeito, né?
Eu não concordava, mais fazia. Tinha de fazê”.
Winston insistiu
sobre informações que havia obtido em livros e perguntou se era comum os ricos
e seus criados empurrarem os pobres “para a sarjeta”. Então o velho respondeu
que certa vez foi empurrado por alguém... Lembrava-se disso como se tivesse
ocorrido no dia anterior e podia dizer que aconteceu numa “noite da Regata” e
os ricos ficavam bem abusados nessas ocasiões. Sucedeu que deu um esbarrão
involuntário num rapaz da alta sociedade que caminhava pela calçada da avenida Shaftesbury...
O tipo caminhava ziguezagueando de peito estufado e se exibindo com sua cartola
e casaca preta.
O
velho explicou que o moço endinheirado foi gritando com ele e querendo saber
por que não olhava para onde caminhava. De sua parte, retrucou que o tipo só
podia estar pensando que tinha comprado a calçada... Em reposta, o outro
ameaçou de torcer-lhe o pescoço. Diante disso, ele perguntou se estava bêbado e
garantiu que chamaria a polícia para prendê-lo. Mas no mesmo instante, o endinheirado
o empurrou para o chão e ele quase foi parar sob as rodas de um ônibus...
Empolgado com a
própria narrativa, o velho deu a entender que continuaria a falar, contando
que, como também era jovem, esteve a ponto de partir para o enfrentamento...
Mas Winston se desesperou e não mais prestou atenção. Concluiu que a memória
daquele prole “não passava de um monturo de pormenores à toa”.
(...)
Concluiu que podia
ficar o dia inteiro a ouvi-lo sem que isso resultasse em algo genuíno ou
produtivo. Lamentou e pensou que “as histórias do Partido talvez fossem
verdadeiras: podiam até ser completamente verídicas”.
Apesar disso, fez nova tentativa... Disse ao velho que talvez não
tivesse se explicado bem e apresentou uma síntese do que esteve imaginando a
seu respeito. Sabia que se tratava de um homem que já tinha vivido bastante
antes da Revolução, provavelmente a metade dos anos que contava. Portanto já
era adulto em 1925. O que ele esperava era que lhe dissesse se a vida anterior
era pior ou melhor e, se tivesse de escolher, em qual dos tempos viveria...
Essas coisas.
O velho não respondeu imediatamente... Em vez disso ficou olhando para o
alvo da brincadeira dos dardos. Depois terminou sua cerveja lentamente. Por fim
começou a dizer que sabia o que o interlocutor esperava ouvir, algo sobre preferir
voltar aos tempos de juventude. Então emendou que a maioria diria isso mesmo,
pois na mocidade é que se tem mais saúde e vigor físico. Chegar à sua idade é
que era complicado, pois a pessoa se torna debilitada... Seus pés eram doloridos
e a “bixiga então nem se fala”. A respeito do trato urinário, completou:
“Seis a sete veis por noite tenho de levantá, Mais tem
sua vantage, sê velho. Não tenho tanta dor de cabeça. Nada de muié, e é
formidave. Há uns trinta ano que não ando com muié, se o sr. credita. Nem quis,
posso jurá”.
(...)
Aquilo pareceu a “gota
d’água” para Winston. Angustiado, encostou-se à janela e entendeu que o velho
não tinha nada de significativo a dizer sobre o passado. Pensou em buscar mais
cerveja no balcão, mas viu que o tipo se dirigiu ao banheiro imundo, certamente
porque estava com a bexiga já bem cheia.
Fixou o olhar na caneca vazia por algum tempo... Depois se retirou do
bar e voltou a caminhar pelas ruas. Suas reflexões o levavam a crer que depois
que se passassem mais umas duas décadas ninguém seria capaz de relatar sobre a
vida anterior à Revolução, se as condições eram melhores ou piores... Na
verdade, depois de ouvir o velho, podia sentenciar que os “sobreviventes do
mundo antigo” nada tinham a dizer sobre o passado e “eram incapazes de comparar
uma época com outra”.
Teve
de admitir que tipos como aquele velho prole:
“Lembravam-se de um milhão de
coisas inúteis, duma briga com um colega, a busca de uma bomba de bicicleta, a expressão
no rosto de uma irmã falecida, o rodopio da poeira numa manhã de vento, setenta
anos atrás: mas todos os fatos relevantes já estavam fora do alcance da sua
visão. Eram como a formiga, que pode ver pequenos objetos, mas não enxerga os
grandes. E quando a memória falhava, e os registos escritos eram falsificados -
era forçoso aceitar a assertiva do Partido de que tinham melhorado as condições
da vida humana, porque não existia, nem jamais poderia existir, qualquer padrão
de comparação”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto