domingo, 15 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – fim da conversa com o velho prole; recordações banais e relato sobre um entrevero com um playboy numa remota noite de regata; o limite da compreensão do velho o levava a sentenciar que no passado tinha mais saúde e vigor físico, mas a idade trazia algumas vantagens; Winston se retira do bar e volta a caminhar com a ideia de que não conseguirá obter qualquer informação dos remanescentes da época anterior ao extremado poder do Partido

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-cervejas-e.html antes de ler esta postagem:

A conversa do velho era decepcionante demais para Winston, que explicou que desejava saber outra coisa bem diferente... Então foi direto ao assunto e perguntou se ele achava que o momento que viviam era de mais liberdade do que o tempo passado, e se pensava que o tratamento que vinha recebendo era mais humano...
Tentando se explicar melhor, voltou a falar sobre o passado e sobre os “ricaços, os que mandavam...”. O velho fez um esforço para se lembrar de algo e começou a dizer qualquer coisa sabre a “Câmara dos Lordes”. Então Winston disse que ele podia mesmo falar a respeito, pois gostaria de saber se ele era tratado como inferior por aquela gente apenas porque eram ricos... Tinha mesmo de chamá-los de “senhor” e “tirar o boné quando passava por eles”?
Mais uma vez o velho deu a entender que se esforçava para pensar a respeito do que o outro lhe dizia... Tomou uma boa quantidade da cerveja e respondeu que:

                   “eles gostava que a gente cumprimentasse eles co boné”, e que isso “era siná de respeito, né? Eu não concordava, mais fazia. Tinha de fazê”.

Winston insistiu sobre informações que havia obtido em livros e perguntou se era comum os ricos e seus criados empurrarem os pobres “para a sarjeta”. Então o velho respondeu que certa vez foi empurrado por alguém... Lembrava-se disso como se tivesse ocorrido no dia anterior e podia dizer que aconteceu numa “noite da Regata” e os ricos ficavam bem abusados nessas ocasiões. Sucedeu que deu um esbarrão involuntário num rapaz da alta sociedade que caminhava pela calçada da avenida Shaftesbury... O tipo caminhava ziguezagueando de peito estufado e se exibindo com sua cartola e casaca preta.
O velho explicou que o moço endinheirado foi gritando com ele e querendo saber por que não olhava para onde caminhava. De sua parte, retrucou que o tipo só podia estar pensando que tinha comprado a calçada... Em reposta, o outro ameaçou de torcer-lhe o pescoço. Diante disso, ele perguntou se estava bêbado e garantiu que chamaria a polícia para prendê-lo. Mas no mesmo instante, o endinheirado o empurrou para o chão e ele quase foi parar sob as rodas de um ônibus...
Empolgado com a própria narrativa, o velho deu a entender que continuaria a falar, contando que, como também era jovem, esteve a ponto de partir para o enfrentamento... Mas Winston se desesperou e não mais prestou atenção. Concluiu que a memória daquele prole “não passava de um monturo de pormenores à toa”.
(...)
Concluiu que podia ficar o dia inteiro a ouvi-lo sem que isso resultasse em algo genuíno ou produtivo. Lamentou e pensou que “as histórias do Partido talvez fossem verdadeiras: podiam até ser completamente verídicas”.
Apesar disso, fez nova tentativa... Disse ao velho que talvez não tivesse se explicado bem e apresentou uma síntese do que esteve imaginando a seu respeito. Sabia que se tratava de um homem que já tinha vivido bastante antes da Revolução, provavelmente a metade dos anos que contava. Portanto já era adulto em 1925. O que ele esperava era que lhe dissesse se a vida anterior era pior ou melhor e, se tivesse de escolher, em qual dos tempos viveria... Essas coisas.
O velho não respondeu imediatamente... Em vez disso ficou olhando para o alvo da brincadeira dos dardos. Depois terminou sua cerveja lentamente. Por fim começou a dizer que sabia o que o interlocutor esperava ouvir, algo sobre preferir voltar aos tempos de juventude. Então emendou que a maioria diria isso mesmo, pois na mocidade é que se tem mais saúde e vigor físico. Chegar à sua idade é que era complicado, pois a pessoa se torna debilitada... Seus pés eram doloridos e a “bixiga então nem se fala”. A respeito do trato urinário, completou:

                   “Seis a sete veis por noite tenho de levantá, Mais tem sua vantage, sê velho. Não tenho tanta dor de cabeça. Nada de muié, e é formidave. Há uns trinta ano que não ando com muié, se o sr. credita. Nem quis, posso jurá”.

(...)
Aquilo pareceu a “gota d’água” para Winston. Angustiado, encostou-se à janela e entendeu que o velho não tinha nada de significativo a dizer sobre o passado. Pensou em buscar mais cerveja no balcão, mas viu que o tipo se dirigiu ao banheiro imundo, certamente porque estava com a bexiga já bem cheia.
Fixou o olhar na caneca vazia por algum tempo... Depois se retirou do bar e voltou a caminhar pelas ruas. Suas reflexões o levavam a crer que depois que se passassem mais umas duas décadas ninguém seria capaz de relatar sobre a vida anterior à Revolução, se as condições eram melhores ou piores... Na verdade, depois de ouvir o velho, podia sentenciar que os “sobreviventes do mundo antigo” nada tinham a dizer sobre o passado e “eram incapazes de comparar uma época com outra”.
Teve de admitir que tipos como aquele velho prole:

                   “Lembravam-se de um milhão de coisas inúteis, duma briga com um colega, a busca de uma bomba de bicicleta, a expressão no rosto de uma irmã falecida, o rodopio da poeira numa manhã de vento, setenta anos atrás: mas todos os fatos relevantes já estavam fora do alcance da sua visão. Eram como a formiga, que pode ver pequenos objetos, mas não enxerga os grandes. E quando a memória falhava, e os registos escritos eram falsificados - era forçoso aceitar a assertiva do Partido de que tinham melhorado as condições da vida humana, porque não existia, nem jamais poderia existir, qualquer padrão de comparação”.

Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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