domingo, 8 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – a realidade como contraponto ao ensinado pelo livro de História e difundido pelo Partido; Jones, Aaronson e Rutherford, três “contrarrevolucionários” que escaparam dos expurgos de 1965, confissões e reabilitação; uma desagradável impressão no Castanheira

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-um-livro-escolar.html antes de ler esta postagem:

A ruína caracterizava a cidade com sua precariedade e sujeira... Winston não vislumbrava qualquer esperança... Para ele, a Senhora Parsons e sua dificuldade em lidar com os filhos hiperativos e com o entupimento do esgoto representava a gente comum que a habitava.
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Enquanto tentava livrar-se da comichão provocada pela variz junto ao tornozelo, lastimou as informações manipuladas que chegavam às casas através das teletelas... Dados mentirosos anunciavam que a vida estava muito melhor e que o biótipo da população se apresentava cada vez “mais alto, forte, saudável e feliz”; propagava-se que alimentos e roupas se tornaram abundantes e diversificados; que a habitação passara a ser decente; que todos começaram a ter mais tempo livre para desfrutar diversas opções de lazer e que, graças à melhoria dos padrões de ensino, o povo se tornara mais inteligente.
Ninguém ousava negar os índices oficiais... Como sabemos, nada podia ser contestado ou provado. O Partido anunciava dados positivos e todos aceitavam que as coisas estavam cada vez melhores... Dizia-se que, graças a um trabalho específico de atendimento às necessidades dos proles, 40% deles haviam sido alfabetizados; conquista notável já que antes do advento do IngSoc esse índice não chegava a 15 %. A diminuição da mortalidade infantil era outra informação que o Partido anunciava a exaustão, apontando resultados cada vez mais positivos... No momento, fazia saber que antes da Revolução morriam cerca de trezentas crianças a cada mil que nasciam e que, graças ao seu trabalho, a mortandade havia caído para 160 por mil nascidos.
As informações eram sempre carregadas de certezas. Os que as ouviam eram levados a crer que as equações apresentadas fossem exatas... Para tipos como Winston sempre havia mais de uma “incógnita”, e mesmo as informações trazidas pelos livros de História que eram processadas pelos estudantes sem qualquer aprofundamento podiam não passar de fantasias... Talvez sequer tivessem existido capitalistas, cartolas ou a prática do “jus primae noctis”.
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O caso é que o regime moldava o passado e desse modo “as mentiras se tornavam verdades”. Winston sabia que uma determinada ocasião chegou às suas mãos uma “prova concreta e inegável de uma falsificação”.
Pelos seus cálculos, por volta de 1973, na época mesma em que havia se separado de Katharine, chegara-lhe às mãos documentos que reportavam acontecimentos de “sete ou oito anos antes”, quando o Partido havia determinado expurgos para a eliminação de antigas lideranças da Revolução... Isso deve ter sido por volta de 1965, e uns cinco anos mais tarde podia-se dizer que já não havia outra personalidade revolucionária além do Grande Irmão.
As notícias a respeito das confissões públicas, inclusive a de Goldstein, dos julgamentos e execuções eram propagadas insistentemente... E como que para manter a população em constante estado de alerta, sempre se noticiava a prisão de remanescentes acusados de traição e de conluios com Goldstein. Este, dizia-se, estava desaparecido e em permanente movimentação contrarrevolucionária...
Apesar da intensa perseguição aos inimigos do regime, o partido sempre tinha mais alguns nomes para denunciar. Três deles deviam ter sido presos ainda em 1965, mas ao que se sabia desapareceram e por pelo menos um ano ninguém conhecia seu paradeiro. Chamavam-se Jones, Aaronson e Rutherford. Muitos os tinham por mortos, mas aconteceu de “ressurgirem” em processos nos quais manifestavam sua culpa em ralação a diversas maquinações contra o sistema.
Casos como esses, de “desaparecimentos temporários seguidos de aparições marcadas por confissões extraordinárias”, eram muito comuns. Os três citados relataram que haviam se entendido com os inimigos eurasianos, subtraíram dinheiro público, participaram do assassinato de membros do Partido e que tramaram contra a liderança do Grande Irmão... Além desses crimes, confessaram a autoria de atos de sabotagem que resultaram na “morte de centenas de milhares de inocentes”.
Por incrível que possa parecer, os três foram perdoados e o Partido tratou de reabilitá-los. Na sequência foram nomeados para cargos de certa importância... Por essa época redigiram artigos em que teciam horrorosas considerações sobre a deserção que protagonizaram e a promessa de não mais errarem.
O próprio Winston chegou a vê-los no Café Castanheira em certa ocasião... Lembrava-se de ter ficado fascinado e de que eram “bem mais velhos que ele”. Por isso os via como “relíquias de um mundo antigo, quase que as últimas grandes figuras remanescentes do passado heroico do Partido”, quando teriam se envolvido nas lutas clandestinas e na guerra civil...
O rapaz não conseguia precisar as datas, e vários fatos lhe surgiam confusos na memória. Apesar disso, tinha quase certeza de que sabia os nomes daqueles três bem antes de o Grande Irmão ter se tornado figura central de todo processo revolucionário. A convicção que tinha era a de que, apesar de todo processo de reabilitação, aqueles três eram ainda “inimigos, intocáveis, condenados à extinção com absoluta certeza, dali a um ano ou dois”, pois uma vez tendo caído “nas mãos da Polícia do Pensamento” jamais conseguiriam se libertar completamente. Assim, podia-se dizer que eram como “cadáveres esperando que os devolvessem ao sepulcro”.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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