Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-o-velho.html antes
de ler esta postagem:
A caminhada em direção ao Edifício Vitória foi
carregada de pensamentos angustiantes. Conforme dava os passos, sentia o peso
da peça de cristal que estava no bolso batendo-lhe na perna. Até pensou em se
desfazer dela, mas o que mais o incomodava era a forte dor de barriga que o
acometeu depois de topar com a moça do Departamento de Ficção. O incômodo era
tão grande que achou que não conseguiria chegar à privada antes de ter um
colapso... Para o seu azar, não encontraria sanitários públicos na área dos
proles.
Por fim o mal-estar
diminuiu e ele pôde suportar a caminhada... Chegou a um beco que não tinha
saída. Pensou por um instante e retornou imaginando que poderia alcançar a moça...
Era só segui-la e esmagar sua cabeça em algum local mais deserto. Podia usar um
paralelepípedo ou até o peso que carregava no bolso. Acontece que só o fato de
ter de esforçar-se fisicamente numa eventual luta, no golpe e corrida, já foi
suficiente para desistir da ideia.
Outra possibilidade seria dirigir-se rapidamente ao Centro Comunal e
permanecer no local até o fechamento... Isso lhe proporcionaria um “álibi
parcial para a noite”. O caso é que se sentia abatido demais para a empreitada
e desejava voltar o quanto antes para casa e descansar.
(...)
Quando chegou ao
apartamento já eram mais de dez da noite... Às onze e meia todo o prédio ficava
sem eletricidade, pois a chave geral era desligada. Dirigiu-se à cozinha e
serviu-se de boa quantidade do Gin Vitória... Na sequência seguiu para a
mesinha, abriu a gaveta e retirou o diário.
Antes de abrir a
encadernação, ouviu uma canção ufanista que saía da teletela aos gritos de uma
mulher... A programação da placa metálica pareceu inibi-lo ou amedrontá-lo, por
isso não abriu imediatamente o diário e permaneceu um tempo a olhá-lo enquanto
pensava que era durante a noite que a Polícia do Pensamento invadia os locais
de residência dos que deviam ser presos.
A sensação de que podia
ocorrer algo de ruim a qualquer momento o fez calcular que diante dessa
perspectiva talvez fosse melhor suicidar-se. Certamente muitos dos que
desapareciam haviam recorrido ao suicídio... Winston pôs-se a pensar na
dificuldade que tiveram. Além da coragem para o ato derradeiro precisaram
encontrar os meios para isso, já que as armas de fogo e os “venenos eficazes”
eram praticamente impossíveis de se conseguir.
Esses pensamentos dominaram
sua mente... Angustiou-se com a possibilidade de ele mesmo estar sendo
monitorado bem de perto. O suicídio podia ser o recurso extremado que exigiria
coragem e força. Pesava-lhe saber que o fim devia chegar com dor e sofrimento
para o organismo. Não estaria amargurado se tivesse conseguido agir contra a
moça do Departamento de Ficção, mas sabia que lhe faltou a energia necessária e
também a coragem para superar o perigo que correria durante a ação.
Concluiu que as situações
que exigem fortes tomadas de decisão e as crises exigem mais do que a luta contra
os inimigos porque elas demandam também o preparo e controle do próprio
organismo.
(...)
Havia tomado o gin e isso o abalara mental e fisicamente... Por causa do
mal-estar que a bebida provocava não conseguia articular os pensamentos, então
ponderou que essa limitação se repete “em todas as situações heroicas ou
trágicas” e que a vida está repleta de episódios marcados pelo suplício do
corpo, como nas seções de tortura física e na luta contra as tragédias ou pelas
causas que consideramos justas. Além disso, há a interminável batalha “contra a
fome, o frio, a insônia, contra uma dor de estômago ou de dentes”.
(...)
Winston havia se recolhido no nicho da sala onde a teletela não captava
sua imagem. Apesar do adiantado da hora, mantinha o propósito de escrever... O
caso é que a placa metálica começou uma nova canção e o som estridente agrediu seus
ouvidos. Quis pensar em O’Brien para fugir da massacrante realidade. Afinal era
para ele que escrevia... O problema é que, por tudo o que lhe ocorrera naquela
noite, não podia deixar de especular sobre sua situação no caso de a Polícia do
Pensamento o levar...
Talvez o matassem logo... De fato, não podia
esperar outro desfecho, mas sabia que antes de eliminarem os inimigos faziam-nos
passar por tortuosas confissões marcadas pela humilhação e suplício. Particularmente,
não podia se conformar com o sofrimento (“rastejar no chão e implorar
misericórdia, o estalo de ossos partidos, os dedos quebrados e o cabelo com
coágulos de sangue”), e não podia entender por que insistiam nesses
procedimentos se a sentença já estava determinada.
O regime era implacável e
tinha nas mãos a possibilidade antecipar a morte dos condenados. Sem dúvida,
para esses, a decisão de encurtarem suas vidas em dias ou semanas seria muito
bem-vinda. Mas isso não acontecia e o cumprimento da sentença era arbitrado
pelos poderosos do IngSoc.
Para
Winston, as únicas certezas que prevaleciam eram as de que cedo ou tarde todos
os que incorriam em comportamentos não recomendados pelo regime e cometiam a
“crimideia” eram descobertos e passavam pelos rituais da confissão. O terror
que o futuro lhes reservava não se alterava.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto