sexta-feira, 20 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – perturbado retorno para o Edifício Vitória; ideia de golpear a moça que o perseguia e a de ir direto para o centro comunitário em busca de um álibi; uma boa dose de gin antes de dedicar-se ao diário; gritante música patriota desde a teletela e novos pensamentos angustiantes sobre as dificuldades dos suicidas e o drama dos condenados pelo regime que certamente prefeririam a antecipação da sentença

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-o-velho.html antes de ler esta postagem:

A caminhada em direção ao Edifício Vitória foi carregada de pensamentos angustiantes. Conforme dava os passos, sentia o peso da peça de cristal que estava no bolso batendo-lhe na perna. Até pensou em se desfazer dela, mas o que mais o incomodava era a forte dor de barriga que o acometeu depois de topar com a moça do Departamento de Ficção. O incômodo era tão grande que achou que não conseguiria chegar à privada antes de ter um colapso... Para o seu azar, não encontraria sanitários públicos na área dos proles.
Por fim o mal-estar diminuiu e ele pôde suportar a caminhada... Chegou a um beco que não tinha saída. Pensou por um instante e retornou imaginando que poderia alcançar a moça... Era só segui-la e esmagar sua cabeça em algum local mais deserto. Podia usar um paralelepípedo ou até o peso que carregava no bolso. Acontece que só o fato de ter de esforçar-se fisicamente numa eventual luta, no golpe e corrida, já foi suficiente para desistir da ideia.
Outra possibilidade seria dirigir-se rapidamente ao Centro Comunal e permanecer no local até o fechamento... Isso lhe proporcionaria um “álibi parcial para a noite”. O caso é que se sentia abatido demais para a empreitada e desejava voltar o quanto antes para casa e descansar.
(...)
Quando chegou ao apartamento já eram mais de dez da noite... Às onze e meia todo o prédio ficava sem eletricidade, pois a chave geral era desligada. Dirigiu-se à cozinha e serviu-se de boa quantidade do Gin Vitória... Na sequência seguiu para a mesinha, abriu a gaveta e retirou o diário.
Antes de abrir a encadernação, ouviu uma canção ufanista que saía da teletela aos gritos de uma mulher... A programação da placa metálica pareceu inibi-lo ou amedrontá-lo, por isso não abriu imediatamente o diário e permaneceu um tempo a olhá-lo enquanto pensava que era durante a noite que a Polícia do Pensamento invadia os locais de residência dos que deviam ser presos.
A sensação de que podia ocorrer algo de ruim a qualquer momento o fez calcular que diante dessa perspectiva talvez fosse melhor suicidar-se. Certamente muitos dos que desapareciam haviam recorrido ao suicídio... Winston pôs-se a pensar na dificuldade que tiveram. Além da coragem para o ato derradeiro precisaram encontrar os meios para isso, já que as armas de fogo e os “venenos eficazes” eram praticamente impossíveis de se conseguir.
Esses pensamentos dominaram sua mente... Angustiou-se com a possibilidade de ele mesmo estar sendo monitorado bem de perto. O suicídio podia ser o recurso extremado que exigiria coragem e força. Pesava-lhe saber que o fim devia chegar com dor e sofrimento para o organismo. Não estaria amargurado se tivesse conseguido agir contra a moça do Departamento de Ficção, mas sabia que lhe faltou a energia necessária e também a coragem para superar o perigo que correria durante a ação.
Concluiu que as situações que exigem fortes tomadas de decisão e as crises exigem mais do que a luta contra os inimigos porque elas demandam também o preparo e controle do próprio organismo.
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Havia tomado o gin e isso o abalara mental e fisicamente... Por causa do mal-estar que a bebida provocava não conseguia articular os pensamentos, então ponderou que essa limitação se repete “em todas as situações heroicas ou trágicas” e que a vida está repleta de episódios marcados pelo suplício do corpo, como nas seções de tortura física e na luta contra as tragédias ou pelas causas que consideramos justas. Além disso, há a interminável batalha “contra a fome, o frio, a insônia, contra uma dor de estômago ou de dentes”.
(...)
Winston havia se recolhido no nicho da sala onde a teletela não captava sua imagem. Apesar do adiantado da hora, mantinha o propósito de escrever... O caso é que a placa metálica começou uma nova canção e o som estridente agrediu seus ouvidos. Quis pensar em O’Brien para fugir da massacrante realidade. Afinal era para ele que escrevia... O problema é que, por tudo o que lhe ocorrera naquela noite, não podia deixar de especular sobre sua situação no caso de a Polícia do Pensamento o levar...
Talvez o matassem logo... De fato, não podia esperar outro desfecho, mas sabia que antes de eliminarem os inimigos faziam-nos passar por tortuosas confissões marcadas pela humilhação e suplício. Particularmente, não podia se conformar com o sofrimento (“rastejar no chão e implorar misericórdia, o estalo de ossos partidos, os dedos quebrados e o cabelo com coágulos de sangue”), e não podia entender por que insistiam nesses procedimentos se a sentença já estava determinada.
O regime era implacável e tinha nas mãos a possibilidade antecipar a morte dos condenados. Sem dúvida, para esses, a decisão de encurtarem suas vidas em dias ou semanas seria muito bem-vinda. Mas isso não acontecia e o cumprimento da sentença era arbitrado pelos poderosos do IngSoc.
Para Winston, as únicas certezas que prevaleciam eram as de que cedo ou tarde todos os que incorriam em comportamentos não recomendados pelo regime e cometiam a “crimideia” eram descobertos e passavam pelos rituais da confissão. O terror que o futuro lhes reservava não se alterava.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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