Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-sobre-o-ativista.html antes
de ler esta postagem:
Winston pensou que se conseguisse publicar um
material como aquele, provocaria um dano irreparável ao Partido. Todos, enfim,
reconheceriam a execrável metodologia da manipulação do passado.
Essas eram divagações que
não podiam alimentar qualquer esperança. Ele sabia disso e voltou a trabalhar.
Assim que viu a fotografia e entendeu o seu significado cobriu-a com um papel.
Suspirou aliviado ao perceber que quando a desenrolou a teletela captou uma
imagem invertida, pois a fotografia e o texto estavam “de cabeça para baixo”.
Na sequência afastou-se o mais que pôde da placa metálica e manteve uma
expressão condizente à das tarefas cotidianas. A maior dificuldade ficou por
conta dos batimentos cardíacos, já que a teletela era suficientemente sensível
para captar alterações emocionais fora de contexto.
Temendo que algum movimento
brusco ou mesmo uma inesperada corrente de vento escancarasse o que havia
descoberto, adiantou-se lentamente para o papel e depositou-o “no buraco da
memória” com alguns outros que logo se tornariam cinzas.
(...)
Ainda sentia os batimentos
do coração se acelerarem ao recordar desses acontecimentos de uns dez ou onze
anos passados. Provavelmente teria feito diferente se o fato se repetisse e
guardaria o documento.
A ideia de ter a reportagem
em mãos o atraia, mas a fotografia já não existia e, por extensão, também os
eventos reportados não ocorreram. Para ele, e provavelmente apenas para ele
mesmo, aquilo tudo não passava de recordação.
Seria o caso de pensar se o
poder extremado do Partido sofreria algum abalo só pelo fato de se saber que
havia uma prova aterradora de suas manipulações sobre o passado. É claro que
ela deixou de existir porque ele mesmo a eliminou... Podia-se pensar também no
caso (improvável) de recuperar o papel das cinzas, mas certamente ele já não
provaria nada.
Na época em que a
fotografia lhe chegou às mãos, a Oceania travava guerra com a Lestásia, e não
com a Eurásia. Então, o processo contra os três só podia acusá-los de traição
junto aos inimigos lestasianos, e não com os eurasianos como apontaram na
confissão. Obviamente muitas retificações deviam ter sido processadas. E como
no período que se seguiu, aconteceram várias reviravoltas, significando a
alternância de inimigos, algumas confusões podiam passar batidas. As confissões
de Jones, Aaronson e Rutherford passaram por várias revisões e, desse modo,
datas e acontecimentos inicialmente apontados já não deviam ter qualquer
significado ou importância. Como Winston bem sabia, “o passado não podia apenas
ser modificado, podia ser mudado continuamente”.
(...)
Ele não conseguia entender a lógica que levara o Partido a começar
fraudar o passado. A princípio até podia imaginar algumas “vantagens
imediatas”, mas não era nada fácil calcular o que se pretendia em longo prazo...
Voltou a pegar a caneta e registrou em seu diário: “Compreendo ‘como’;
não compreendo ‘porquê’”. Depois refletiu sobre seu estado mental... Não seria
ele um lunático? Nesse caso talvez fosse “uma minoria de um”. Pensou como no
passado os que acreditavam que a Terra gira ao redor eram considerados loucos...
A vida dominada pelo Partido fazia com que os que acreditavam “que o passado é
inalterável” fossem os loucos do momento.
A ideia de entender-se lunático, por manter a
convicção de que o passado não podia ser definitivamente alterado, não o
abalava... Podia assimilar a condição de lunático solitário. Mas e se estivesse
enganado? Nesse caso ficaria horrorizado.
(...)
Sobre a mesa estava o livro
emprestado pela Senhora Parsons. Na capa, o retrato do Grande Irmão... O olhar
da maior liderança política era intimidador e infiltrava-se no crânio,
provocava medo “e fazia perder a fé, persuadia quase a negar a evidência dos
sentidos”.
Winston pensou que faltava o Partido anunciar “que dois e dois são
cinco”, algo abjeto, mas que todos teriam de aceitar sem pestanejar. A
tendência era que algo dessa natureza fosse proclamado algum dia, pois essa era
“lógica do sistema” que negava dados empíricos e a “própria existência da
realidade externa”.
Com
o poder extremado do Partido, podia-se ter a certeza de que os valores se
invertiam e a razoabilidade do bom senso era anulada e passava a ser
considerada “a heresia das heresias”. Por motivos relacionados à contrariedade
desses princípios, muitos eram condenados à morte. Evidentemente isso
aterrorizava, todavia, dada a manipulação ideológica, ficava sempre a ideia de
que poderia haver razão na metodologia aplicada.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-epistemologia-e-o.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto