terça-feira, 10 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – ainda a fotografia e a reportagem, descobertas espetaculares que podiam abalar a credibilidade do Partido; do modo como Winston livrou-se dos documentos; a prova de que as confissões de Jones, Aaronson e Rutherford eram forjadas; reflexões sobre a insistência do Partido em prosseguir manipulando o passado; a loucura de manter-se convicto das “certezas refutadas”; da não distante possibilidade de anunciarem que “dois e dois são cinco”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-sobre-o-ativista.html antes de ler esta postagem:

Winston pensou que se conseguisse publicar um material como aquele, provocaria um dano irreparável ao Partido. Todos, enfim, reconheceriam a execrável metodologia da manipulação do passado.
Essas eram divagações que não podiam alimentar qualquer esperança. Ele sabia disso e voltou a trabalhar. Assim que viu a fotografia e entendeu o seu significado cobriu-a com um papel. Suspirou aliviado ao perceber que quando a desenrolou a teletela captou uma imagem invertida, pois a fotografia e o texto estavam “de cabeça para baixo”.
Na sequência afastou-se o mais que pôde da placa metálica e manteve uma expressão condizente à das tarefas cotidianas. A maior dificuldade ficou por conta dos batimentos cardíacos, já que a teletela era suficientemente sensível para captar alterações emocionais fora de contexto.
Temendo que algum movimento brusco ou mesmo uma inesperada corrente de vento escancarasse o que havia descoberto, adiantou-se lentamente para o papel e depositou-o “no buraco da memória” com alguns outros que logo se tornariam cinzas.
(...)
Ainda sentia os batimentos do coração se acelerarem ao recordar desses acontecimentos de uns dez ou onze anos passados. Provavelmente teria feito diferente se o fato se repetisse e guardaria o documento.
A ideia de ter a reportagem em mãos o atraia, mas a fotografia já não existia e, por extensão, também os eventos reportados não ocorreram. Para ele, e provavelmente apenas para ele mesmo, aquilo tudo não passava de recordação.
Seria o caso de pensar se o poder extremado do Partido sofreria algum abalo só pelo fato de se saber que havia uma prova aterradora de suas manipulações sobre o passado. É claro que ela deixou de existir porque ele mesmo a eliminou... Podia-se pensar também no caso (improvável) de recuperar o papel das cinzas, mas certamente ele já não provaria nada.
Na época em que a fotografia lhe chegou às mãos, a Oceania travava guerra com a Lestásia, e não com a Eurásia. Então, o processo contra os três só podia acusá-los de traição junto aos inimigos lestasianos, e não com os eurasianos como apontaram na confissão. Obviamente muitas retificações deviam ter sido processadas. E como no período que se seguiu, aconteceram várias reviravoltas, significando a alternância de inimigos, algumas confusões podiam passar batidas. As confissões de Jones, Aaronson e Rutherford passaram por várias revisões e, desse modo, datas e acontecimentos inicialmente apontados já não deviam ter qualquer significado ou importância. Como Winston bem sabia, “o passado não podia apenas ser modificado, podia ser mudado continuamente”.
(...)
Ele não conseguia entender a lógica que levara o Partido a começar fraudar o passado. A princípio até podia imaginar algumas “vantagens imediatas”, mas não era nada fácil calcular o que se pretendia em longo prazo...
Voltou a pegar a caneta e registrou em seu diário: “Compreendo ‘como’; não compreendo ‘porquê’”. Depois refletiu sobre seu estado mental... Não seria ele um lunático? Nesse caso talvez fosse “uma minoria de um”. Pensou como no passado os que acreditavam que a Terra gira ao redor eram considerados loucos... A vida dominada pelo Partido fazia com que os que acreditavam “que o passado é inalterável” fossem os loucos do momento.
A ideia de entender-se lunático, por manter a convicção de que o passado não podia ser definitivamente alterado, não o abalava... Podia assimilar a condição de lunático solitário. Mas e se estivesse enganado? Nesse caso ficaria horrorizado.
(...)
Sobre a mesa estava o livro emprestado pela Senhora Parsons. Na capa, o retrato do Grande Irmão... O olhar da maior liderança política era intimidador e infiltrava-se no crânio, provocava medo “e fazia perder a fé, persuadia quase a negar a evidência dos sentidos”.
Winston pensou que faltava o Partido anunciar “que dois e dois são cinco”, algo abjeto, mas que todos teriam de aceitar sem pestanejar. A tendência era que algo dessa natureza fosse proclamado algum dia, pois essa era “lógica do sistema” que negava dados empíricos e a “própria existência da realidade externa”.
Com o poder extremado do Partido, podia-se ter a certeza de que os valores se invertiam e a razoabilidade do bom senso era anulada e passava a ser considerada “a heresia das heresias”. Por motivos relacionados à contrariedade desses princípios, muitos eram condenados à morte. Evidentemente isso aterrorizava, todavia, dada a manipulação ideológica, ficava sempre a ideia de que poderia haver razão na metodologia aplicada.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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