quinta-feira, 19 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – o velho Charrington da loja de antiguidades conta mais a respeito das cantigas e as referências a igrejas da antiga Londres; as exposições do prédio da Pinacoteca, onde havia a igreja de São Martinho; divagações sobre retornos à loja para a aquisição de velhos artigos sem descartar a possibilidade de alugar o quarto do piso superior; uma visão inesperada e desesperadora

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-conhecendo-o.html antes de ler esta postagem:

Winston disse ao velho da loja de antiguidades que jamais soubera que as ruínas que ficavam no meio da rua do Palácio da Justiça fossem de uma igreja... Pensou que dificilmente se aprenderia algo da História a partir da contemplação dos monumentos arquitetônicos porque o regime havia alterado tudo.
O velho explicou que ainda existiam igrejas que não haviam sido destruídas, todavia eram usadas para “outros fins”. Na sequência esforçou-se para lembrar mais da antiga cantiga de quadrilha, então completou os versos: “Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente; Me deve três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho”.
Explicou que “o vintém era uma moedinha de cobre, meio parecida com um centavo”. Winston quis saber onde se localizava a Igreja de S. Martinho e o homem respondeu que ela permanecia no mesmo local, Praça da Vitória, junto à Pinacoteca... Seu prédio tinha desenho triangular e possuía escadaria com muitos degraus.
O local não era estranho para Winston... Ele sabia que nas instalações funcionava um museu dedicado às exposições da propaganda, normalmente maquetes e “miniaturas de bombas-foguetes e fortalezas flutuantes, modelos de cera representando atrocidades do inimigo e assim por diante”.
O lojista disse que a igreja se chamava São Martinho dos Campos, embora ele mesmo não se lembrasse de qualquer campo nas imediações...
(...)
Winston deixou a loja sem comprar a gravura. Pensou que mais essa aquisição traria outras preocupações. Para levar para casa teria de tirá-la da moldura... Antes de sair, conversou um pouco mais com o velho. Este lhe explicou que não se chamava Weeks, como estava inscrito na fachada da loja, e sim Charrington.
O homem contava sessenta e três anos e já fazia trinta que vivia só após ter se tornado viúvo... Ele brincou que teve todo esse tempo para alterar o letreiro da fachada da loja, porém nunca tomou a providência. Winston o ouvia, mas não lhe saia da cabeça a antiga cantiga dos sinos de S. Clemente, sobre as laranjas e os limões, e a dos sinos de S. Martinho, que lembravam que alguém estava devendo “três vinténs”.
Ao cantarolar mentalmente, parecia ouvir os sinos da cidade antiga e “perdida que ainda existia nalguma parte, disfarçada e esquecida”. Mas ele mesmo sabia que nunca ouvira badalar de sinos em sua vida.
Ao se despedir de Charrington, resolveu encaminhar-se sozinho para o piso inferior e sair da loja... Não queria que o lojista o visse olhando para todos os lados como um paranoico. De sua parte, estava decidido a retornar ao estabelecimento... Calculou que talvez fosse preciso esperar um intervalo de um mês para arriscar-se novamente por aquelas paragens. Ponderou que visitar a loja de antiguidades talvez não fosse tão arriscado quanto faltar aos saraus do Centro Comunitário...
(...)
Voltar à bricabraque foi uma decisão perigosa, de acordo com o próprio Winston uma “grande tolice”. Afinal sequer sabia se o proprietário Charrington era confiável. Apesar disso, achou que poderia voltar ainda outras vezes, assim compraria outras quinquilharias que considerasse bonitas reminiscências do passado anterior ao poder extremado do IngSoc. Gostou da gravura da Igreja de S. Clemente dos Dinamarqueses e certamente a adquiriria... Teria apenas de tirá-la da moldura e ocultá-la no macacão. Conversaria mais com o velho Charrington esperando que ele conseguisse se lembrar de outras partes das canções.
A ideia de retornar à loja de Charrington, então, deixou de ser estapafúrdia... Inclusive, Winston considerou a possibilidade de alugar o quarto localizado acima dela... E tanto mergulhou em seus pensamentos que, quando deixou o recinto, se esqueceu de verificar a movimentação da rua para se inteirar da presença de eventuais espiões.
Caminhou cantarolando baixinho a melodia das “laranjas e limões” e ao chegar à parte do “me deves três vinténs” avistou alguém que trajava macacão azul e vinha na direção oposta. Obviamente se assustou e sentiu o coração gelar. A maior surpresa foi notar que era justamente a moça morena que trabalhava no Departamento de Ficção. Apesar da pouca luz, ele sabia que poderia ser reconhecido por ela... E aconteceu que, ao passarem um pelo outro, ela o encarou e depois continuou seu caminho como se nada demais tivesse ocorrido.
Winston ficou apavorado e não conseguiu dar os passos que o levariam para casa. Assim que voltou a caminhar, seus passos se demonstraram vacilantes e ainda por cima tomaram rumo errado. Mas não foi isso o que o incomodou inicialmente, e sim o fato de passar a ter certeza de que a mulher o espionava regularmente. Pensou que ela o seguira pelas ruas proles, já que não era por acaso que tivessem caminhado pela mesma calçada, “a quilômetros de distância de qualquer bairro habitado por membros do Partido”.
Seria coincidência? Algo improvável. O rapaz simplesmente não via lógica... Além disso, deixava de ter importância se ela pertencesse às tropas da Polícia do Pensamento ou se fosse uma militante fanática e dedicada a espionagens por conta própria. O caso é que não podia deixar de considerar que ela o tivesse flagrado entrando no bar.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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