Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-conhecendo-o.html antes
de ler esta postagem:
Winston disse ao velho da loja de antiguidades
que jamais soubera que as ruínas que ficavam no meio da rua do Palácio da
Justiça fossem de uma igreja... Pensou que dificilmente se aprenderia algo da
História a partir da contemplação dos monumentos arquitetônicos porque o regime
havia alterado tudo.
O velho explicou que
ainda existiam igrejas que não haviam sido destruídas, todavia eram usadas para
“outros fins”. Na sequência esforçou-se para lembrar mais da antiga cantiga de
quadrilha, então completou os versos: “Laranjas e limões, dizem os sinos de S.
Clemente; Me deve três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho”.
Explicou que “o vintém era uma moedinha de cobre, meio parecida com um
centavo”. Winston quis saber onde se localizava a Igreja de S. Martinho e o
homem respondeu que ela permanecia no mesmo local, Praça da Vitória, junto à
Pinacoteca... Seu prédio tinha desenho triangular e possuía escadaria com
muitos degraus.
O
local não era estranho para Winston... Ele sabia que nas instalações funcionava
um museu dedicado às exposições da propaganda, normalmente maquetes e “miniaturas
de bombas-foguetes e fortalezas flutuantes, modelos de cera representando
atrocidades do inimigo e assim por diante”.
O lojista disse que a
igreja se chamava São Martinho dos Campos, embora ele mesmo não se lembrasse de
qualquer campo nas imediações...
(...)
Winston
deixou a loja sem comprar a gravura. Pensou que mais essa aquisição traria outras
preocupações. Para levar para casa teria de tirá-la da moldura... Antes de
sair, conversou um pouco mais com o velho. Este lhe explicou que não se chamava
Weeks, como estava inscrito na fachada da loja, e sim Charrington.
O homem contava
sessenta e três anos e já fazia trinta que vivia só após ter se tornado
viúvo... Ele brincou que teve todo esse tempo para alterar o letreiro da
fachada da loja, porém nunca tomou a providência. Winston o ouvia, mas não lhe
saia da cabeça a antiga cantiga dos sinos de S. Clemente, sobre as laranjas e
os limões, e a dos sinos de S. Martinho, que lembravam que alguém estava
devendo “três vinténs”.
Ao cantarolar
mentalmente, parecia ouvir os sinos da cidade antiga e “perdida que ainda
existia nalguma parte, disfarçada e esquecida”. Mas ele mesmo sabia que nunca
ouvira badalar de sinos em sua vida.
Ao se despedir de Charrington, resolveu encaminhar-se sozinho para o
piso inferior e sair da loja... Não queria que o lojista o visse olhando para
todos os lados como um paranoico. De sua parte, estava decidido a retornar ao
estabelecimento... Calculou que talvez fosse preciso esperar um intervalo de um
mês para arriscar-se novamente por aquelas paragens. Ponderou que visitar a
loja de antiguidades talvez não fosse tão arriscado quanto faltar aos saraus do
Centro Comunitário...
(...)
Voltar à bricabraque foi uma decisão perigosa, de acordo com o próprio
Winston uma “grande tolice”. Afinal sequer sabia se o proprietário Charrington
era confiável. Apesar disso, achou que poderia voltar ainda outras vezes, assim
compraria outras quinquilharias que considerasse bonitas reminiscências do
passado anterior ao poder extremado do IngSoc. Gostou da gravura da Igreja de
S. Clemente dos Dinamarqueses e certamente a adquiriria... Teria apenas de
tirá-la da moldura e ocultá-la no macacão. Conversaria mais com o velho Charrington
esperando que ele conseguisse se lembrar de outras partes das canções.
A ideia de retornar à loja de Charrington,
então, deixou de ser estapafúrdia... Inclusive, Winston considerou a
possibilidade de alugar o quarto localizado acima dela... E tanto mergulhou em
seus pensamentos que, quando deixou o recinto, se esqueceu de verificar a
movimentação da rua para se inteirar da presença de eventuais espiões.
Caminhou cantarolando
baixinho a melodia das “laranjas e limões” e ao chegar à parte do “me deves
três vinténs” avistou alguém que trajava macacão azul e vinha na direção
oposta. Obviamente se assustou e sentiu o coração gelar. A maior surpresa foi
notar que era justamente a moça morena que trabalhava no Departamento de Ficção.
Apesar da pouca luz, ele sabia que poderia ser reconhecido por ela... E
aconteceu que, ao passarem um pelo outro, ela o encarou e depois continuou seu
caminho como se nada demais tivesse ocorrido.
Winston ficou apavorado e não conseguiu dar os passos que o levariam
para casa. Assim que voltou a caminhar, seus passos se demonstraram vacilantes
e ainda por cima tomaram rumo errado. Mas não foi isso o que o incomodou
inicialmente, e sim o fato de passar a ter certeza de que a mulher o espionava
regularmente. Pensou que ela o seguira pelas ruas proles, já que não era por
acaso que tivessem caminhado pela mesma calçada, “a quilômetros de distância de
qualquer bairro habitado por membros do Partido”.
Seria
coincidência? Algo improvável. O rapaz simplesmente não via lógica... Além
disso, deixava de ter importância se ela pertencesse às tropas da Polícia do
Pensamento ou se fosse uma militante fanática e dedicada a espionagens por
conta própria. O caso é que não podia deixar de considerar que ela o tivesse
flagrado entrando no bar.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto