domingo, 29 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – o “falar a prestações” de Júlia e Winston pelas calçadas de Londres à noite; um inesperado e inimaginável beijo após a queda de uma bomba-foguete; a jornada semanal da garota e o “voluntariado” de Winston na oficina de confecção de componentes para bombas; encontro no campanário abafado e infestado de pombos e detritos; revelações sobre particularidades do cotidiano da jovem, seu trabalho no Departamento de Ficção e opinião a respeito da produção dos livros; nada a dizer sobre acontecimentos anteriores a 1960; período escolar e inclusão nos movimentos ideológicos juvenis

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-rebelde-diante.html antes de ler esta postagem:

Na sequência do mês de maio os dois só conseguiram ficar juntos numa única oportunidade. E mais uma vez foi um local indicado por Júlia, “o campanário de uma igreja arruinada, local quase deserto onde uma bomba atômica caíra trinta anos antes”. Havia a dificuldade de se deslocar até lá, além do inconveniente de ser infestado por pombos e suas imundícies.
É certo que passavam um pelo outro nas calçadas em certas noites, mas nessas ocasiões jamais se olhavam ou ficavam lado-a-lado. Além disso, evitavam completar as frases que trocavam para não serem flagrados pelas teletelas dos trajetos ou por membros do partido que estivessem circulando em meio aos transeuntes. O fato de retomarem as “conversas interrompidas” momentos depois tornava a comunicação bem estranha, todavia eles se entendiam bem mesmo que concluíssem a conversa depois de alguns dias e em ponto diferente da calçada. Júlia chamava essas conversas de “falar a prestações”. Obviamente ensinara o método ao Winston, que admirava sua “habilidade de falar sem mexer os lábios”.
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Não foram poucas as vezes em que passaram um pelo outro “sem nada dizer” por terem notado a presença de patrulha ou o sobrevoo de helicóptero na área. Apesar disso, por incrível que possa parecer, houve uma ocasião em que conseguiram se beijar quando andavam pelas calçadas à noite. E isso foi possível depois que uma bomba-foguete caiu nas proximidades, provocando tremor da terra, barulho ensurdecedor e considerável destruição...
A atmosfera tornou-se escurecida e a gente que se encontrava nos arredores foi lançada ao chão. Winston encheu-se de pavor, pois notou várias escoriações no próprio corpo. Mais assustado ficou ao notar Júlia caída e com uma “brancura de morte” no rosto, porém as condições permitiram que se aproximasse para conferir, e foi assim que a apertou contra o próprio peito e colou os lábios nos dela... De repente sentiu que ela o beijava e pôde entender que seu rosto verdade estava coberto pela poeira branca de destroços.
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Mesmo que não houvesse riscos, teriam dificuldade para se encontrar com regularidade por causa das longas jornadas de trabalho de ambos. Winston trabalhava sessenta horas por semana, Júlia cumpria horários ainda mais extenuantes e seus dias de folga dependiam do desenvolvimento das atividades no Departamento de Ficção, de modo que nem sempre coincidiam com os do namorado.
No caso de Júlia, havia ainda a sua determinação de participar de eventos extras e voluntários, como conferências e distribuição de material gráfico com a literatura da Liga Juvenil Anti-Sexo... A moça envolvia-se ainda na organização da “Semana do Ódio, cobrando contribuições da campanha de poupança, e atividades similares”. Ela mesma havia garantido ao Winston que o engajamento lhe dava “camuflagem” e afastava as desconfianças.
Basicamente considerava que “respeitando as leis menores podia infringir as maiores”. E tanto confiava neste princípio que insistiu para que Winston se oferecesse para o trabalho voluntário “numa fábrica de munições, nas horas vagas”, como faziam os mais esforçados militantes. E foi o que ele fez... Tornou-se assíduo no trabalho junto a uma “oficina mal iluminada e ventilada”, onde, por quatro horas suportava atividades desagradáveis de montagem de partes de fusíveis de bomba ao som das músicas das teletelas.
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Na tarde ensolarada em que se encontraram no campanário da igreja puderam falar a respeito das conversas não concluídas em suas caminhadas noturnas pelas calçadas. Mas, conforme salientado anteriormente, tiveram de suportar uma atmosfera abafada e malcheirosa pelas fezes e penas de pombos.
Apesar disso, acomodaram-se no assoalho e aproveitaram para conversar por um bom tempo. Suportaram os detritos e o odor também porque desde onde estavam podiam conferir se alguém se aproximava.
Graças a este encontro, Winston pôde saber que Júlia contava vinte e seis anos, “morava numa hospedaria com outras trinta moças”, o que a desagradava sobremaneira, e trabalhava no Departamento de Ficção operando “máquinas novelizadoras”. Aliás ele havia imaginado isso mesmo.
A moça não tinha muitas queixas em relação ao trabalho de manter funcionando e “em bom estado um poderoso e complicado motor elétrico”. E não tinha dificuldade para explicar “todo o processo de composição de um romance, desde a diretriz geral traçada pelo Comité de Planejamento até os retoques finais, pelo Esquadrão de reescritores”. O único senão é que ela mesma não tinha qualquer interesse pelo produto final de seu setor, já que a leitura não era das atividades que mais apreciava... Achava inclusive que os livros eram artigos comuns que, “como botinas ou compotas”, deviam ser produzidos em série apenas porque o Partido exigia.
A respeito dos questionamentos tão caros ao Winston, tinha a dizer que não se lembrava de nada que fosse anterior a 1960... Conhecera apenas um avô que falava a sobre alguns fatos anteriores à Revolução, mas o velho simplesmente desapareceu quando ela tinha somente oito anos.
Até onde se lembrava, Júlia sabia que havia se destacado em sua época de escola... Chegou a ser a capitã do time de hóquei e venceu a competição de ginástica por dois anos seguidos. Além disso, tornou-se “chefe de tropa nos Espiões e secretária distrital da Liga da Juventude antes de entrar para a Liga Juvenil Anti-Sexo”.
Como se pode concluir, um início de biografia insuspeito e bem ajustado aos princípios do IngSoc.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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