Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-rebelde-diante.html antes
de ler esta postagem:
Na sequência do mês de maio os dois só
conseguiram ficar juntos numa única oportunidade. E mais uma vez foi um local
indicado por Júlia, “o campanário de uma igreja arruinada, local quase deserto
onde uma bomba atômica caíra trinta anos antes”. Havia a dificuldade de se
deslocar até lá, além do inconveniente de ser infestado por pombos e suas
imundícies.
É certo que passavam
um pelo outro nas calçadas em certas noites, mas nessas ocasiões jamais se
olhavam ou ficavam lado-a-lado. Além disso, evitavam completar as frases que
trocavam para não serem flagrados pelas teletelas dos trajetos ou por membros
do partido que estivessem circulando em meio aos transeuntes. O fato de
retomarem as “conversas interrompidas” momentos depois tornava a comunicação bem
estranha, todavia eles se entendiam bem mesmo que concluíssem a conversa depois
de alguns dias e em ponto diferente da calçada. Júlia chamava essas conversas
de “falar a prestações”. Obviamente ensinara o método ao Winston, que admirava
sua “habilidade de falar sem mexer os lábios”.
(...)
Não foram poucas as vezes em que passaram um pelo outro “sem nada dizer”
por terem notado a presença de patrulha ou o sobrevoo de helicóptero na área.
Apesar disso, por incrível que possa parecer, houve uma ocasião em que
conseguiram se beijar quando andavam pelas calçadas à noite. E isso foi
possível depois que uma bomba-foguete caiu nas proximidades, provocando tremor
da terra, barulho ensurdecedor e considerável destruição...
A
atmosfera tornou-se escurecida e a gente que se encontrava nos arredores foi
lançada ao chão. Winston encheu-se de pavor, pois notou várias escoriações no
próprio corpo. Mais assustado ficou ao notar Júlia caída e com uma “brancura de
morte” no rosto, porém as condições permitiram que se aproximasse para
conferir, e foi assim que a apertou contra o próprio peito e colou os lábios
nos dela... De repente sentiu que ela o beijava e pôde entender que seu rosto verdade
estava coberto pela poeira branca de destroços.
(...)
Mesmo que não
houvesse riscos, teriam dificuldade para se encontrar com regularidade por
causa das longas jornadas de trabalho de ambos. Winston trabalhava sessenta
horas por semana, Júlia cumpria horários ainda mais extenuantes e seus dias de
folga dependiam do desenvolvimento das atividades no Departamento de Ficção, de
modo que nem sempre coincidiam com os do namorado.
No
caso de Júlia, havia ainda a sua determinação de participar de eventos extras e
voluntários, como conferências e distribuição de material gráfico com a
literatura da Liga Juvenil Anti-Sexo... A moça envolvia-se ainda na organização
da “Semana do Ódio, cobrando contribuições da campanha de poupança, e
atividades similares”. Ela mesma havia garantido ao Winston que o engajamento
lhe dava “camuflagem” e afastava as desconfianças.
Basicamente
considerava que “respeitando as leis menores podia infringir as maiores”. E
tanto confiava neste princípio que insistiu para que Winston se oferecesse para
o trabalho voluntário “numa fábrica de munições, nas horas vagas”, como faziam
os mais esforçados militantes. E foi o que ele fez... Tornou-se assíduo no
trabalho junto a uma “oficina mal iluminada e ventilada”, onde, por quatro
horas suportava atividades desagradáveis de montagem de partes de fusíveis de
bomba ao som das músicas das teletelas.
(...)
Na tarde ensolarada
em que se encontraram no campanário da igreja puderam falar a respeito das
conversas não concluídas em suas caminhadas noturnas pelas calçadas. Mas,
conforme salientado anteriormente, tiveram de suportar uma atmosfera abafada e
malcheirosa pelas fezes e penas de pombos.
Apesar disso, acomodaram-se no assoalho e aproveitaram para conversar
por um bom tempo. Suportaram os detritos e o odor também porque desde onde
estavam podiam conferir se alguém se aproximava.
Graças a este encontro, Winston pôde saber que Júlia contava vinte e
seis anos, “morava numa hospedaria com outras trinta moças”, o que a
desagradava sobremaneira, e trabalhava no Departamento de Ficção operando “máquinas
novelizadoras”. Aliás ele havia imaginado isso mesmo.
A moça não tinha muitas queixas em relação ao
trabalho de manter funcionando e “em bom estado um poderoso e complicado motor
elétrico”. E não tinha dificuldade para explicar “todo o processo de composição
de um romance, desde a diretriz geral traçada pelo Comité de Planejamento até
os retoques finais, pelo Esquadrão de reescritores”. O único senão é que ela
mesma não tinha qualquer interesse pelo produto final de seu setor, já que a
leitura não era das atividades que mais apreciava... Achava inclusive que os livros
eram artigos comuns que, “como botinas ou compotas”, deviam ser produzidos em
série apenas porque o Partido exigia.
A respeito dos
questionamentos tão caros ao Winston, tinha a dizer que não se lembrava de nada
que fosse anterior a 1960... Conhecera apenas um avô que falava a sobre alguns
fatos anteriores à Revolução, mas o velho simplesmente desapareceu quando ela
tinha somente oito anos.
Até onde se lembrava, Júlia sabia que havia se destacado em sua época de
escola... Chegou a ser a capitã do time de hóquei e venceu a competição de
ginástica por dois anos seguidos. Além disso, tornou-se “chefe de tropa nos
Espiões e secretária distrital da Liga da Juventude antes de entrar para a Liga
Juvenil Anti-Sexo”.
Como
se pode concluir, um início de biografia insuspeito e bem ajustado aos
princípios do IngSoc.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-tendo-trabalhado.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto