Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-garota-chegou-e-o.html antes
de ler esta postagem:
Winston e Júlia chegaram à clareira do bosque
que ela parecia conhecer bem... Estamos neste ponto do início do encontro em
que ela quis saber o que ele pensava a seu respeito até o dia em que lhe dera o
recado num dos corredores do Ministério da Verdade...
Como não pretendia mentir-lhe,
Winston respondeu com sinceridade que a odiava e que alimentava desejos de
violentá-la e depois eliminá-la. Confessou que há duas semanas estivera a ponto
de quebrar-lhe a cabeça, pois imaginou que ela fosse dos quadros da Polícia do
Pensamento.
Júlia riu-se a valer... Achou graça que o seu comportamento e modo de se
apresentar enganavam tão bem. Mas disse que era um disparate associá-la à
Polícia do Pensamento, então quis que Winston confirmasse que era isso mesmo o
que imaginava. Ele respondeu que talvez não fosse bem assim, mas admitiu que
sua jovialidade e saúde o levaram a imaginar que fosse das mais fanáticas
seguidoras do Partido.
A garota pareceu entender e
traçou uma síntese do que mais ele podia ter pensado a seu respeito: “boa
militante; pura de palavras e atos; assídua nas passeatas com suas faixas e
palavras de ordem; atividades comunais de recreação”. Para ela, era de se
admirar que alguém pudesse achar que poderia atuar como agente de combate a
“ideocriminosos”. E que o denunciasse, levando-o à morte.
Winston confirmou que
pensava mais ou menos assim e que ela tinha de concordar que havia muitas
mulheres que atuavam daquela forma. Júlia não discordou e sentenciou que “a
faixa escarlate da Liga Juvenil Anti-Sexo” passava a impressão... Arrancou no
mesmo instante e lançou-a sobre a vegetação ao mesmo tempo em que a chamava de
“porcaria”. Depois tirou uma barra de chocolate do bolso de seu macacão e a
dividiu com o companheiro. Ele se admirou com o aroma e a qualidade do
acabamento do invólucro prateado, algo de qualidade e nada comparado ao que era
fornecido pelo regime, “em papel pardo-fosco, e o chocolate sempre quebradiço,
com gosto de fumaça de lixo”.
O petisco era algo raro,
mas Winston tinha certeza de que já havia experimentado algo parecido... O
perfume e o sabor traziam-lhe “recordações que não podia precisar, mas que eram
poderosas e perturbadoras”. Quis saber onde ela havia conseguido.
Júlia contou que tinha sido
no mercado negro... Respondeu como se estivesse falando de algo natural. Depois
emendou que as pessoas a conheciam a partir do que enxergavam de seu
“exterior”, alguém que se destacava nas competições, que havia sido “chefe de
tropa nos Espiões”, que trabalhava voluntariamente “três noites por semana na
Liga Juvenil Anti-Sexo” e que tinha uma militância exemplar pelas ruas de
Londres... Nas passeatas sempre era vista ajudando a levar as maiores faixas, e
com a fisionomia disposta e alegre.
Por fim, salientou que aquele seu modo de se comportar era a única
maneira de “não correr perigo”.
(...)
Winston a ouviu com atenção enquanto saboreava seu pedaço de
chocolate... Algo incrivelmente delicioso e que o levava a pensar a respeito da
recordação que o incomodara, “algo que podia sentir, mas não reduzir a uma
forma definida, como um objeto visto com o rabo do olho”. Concluiu que o melhor
que tinha a fazer era tirá-la da cabeça... O que podia fazer se a única coisa
que sabia a respeito daquela “reminiscência” era “que se tratava da lembrança
de algum ato que gostaria de desfazer, mas não podia”?
Voltou-se para Júlia e disse que ela era bem
jovem e que devia ter uns dez ou quinze anos a menos que ele. Perguntou o que
vira nele para que se sentisse atraída. Ela respondeu que achou que devia se
arriscar, pois tinha visto algo de diferente em sua cara. Emendou que tinha
aptidão para “descobrir gente que não se adapta” e logo que o viu imaginou que
devia ser “contra eles”.
Obviamente ela se referia
aos maiorais do Partido, notadamente o Partido Interno... Winston espantou-se
com o modo como ela vociferava com ódio e desdém em relação ao poder. Sossegou
um pouco ao lembrar-se que estavam seguros naquela clareira... Depois
problematizou a respeito da possibilidade de haver mesmo segurança “em alguma
parte”.
Chamava a atenção o modo como Júlia não poupava palavrões ao se referir
ao regime e ao Partido principalmente porque o procedimento era altamente
desaconselhável para seus membros... O próprio Winston não proferia impropérios
e xingamentos em voz alta, por isso espantava-se com o fato de a garota parecer
incapaz de falar sobre o Partido Interno “sem usar os palavrões que se veem
escritos a giz e a carvão em certas ruas escuras”.
Não podia dizer que a
reprovasse... Pelo contrário! O modo como ela se comportava revelava toda sua
revolta contra o sistema, assim, para ele, aquilo soava “natural e saudável”.
(...)
Retiraram-se da clareira e
voltaram a caminhar pela alameda... Nos trechos em que era possível, andaram de
braços envolvidos às cinturas um do outro. Para Winston, a ausência da faixa
tornava a cintura de Júlia mais macia e “maleável”.
Falavam,
mas era aos sussurros... Não demorou e alcançaram o fim do pequeno bosque,
então a garota o fez parar, explicando que era melhor não avançarem mais, pois
podia haver espiões à frente e desde que permanecessem protegidos pelas
ramagens não corriam qualquer risco.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-uma-paisagem-ja.html
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um
abraço,
Prof.Gilberto