sexta-feira, 27 de agosto de 2021

“1984”, de George Orwell – Winston disse à Júlia o que pensava a seu respeito antes de ter recebido o “recado”; do modo como a aparência e as atitudes fanáticas contribuem para iludir e ao mesmo tempo “proteger dos perigos”; um chocolate de qualidade e estranha sensação de “déjà-vu”; a moça explica a atração pelo Winston; impropérios ao se referir ao Partido e aos seus maiorais; convém permanecer na área protegida pelas ramagens

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2021/08/1984-de-george-orwell-garota-chegou-e-o.html antes de ler esta postagem:

Winston e Júlia chegaram à clareira do bosque que ela parecia conhecer bem... Estamos neste ponto do início do encontro em que ela quis saber o que ele pensava a seu respeito até o dia em que lhe dera o recado num dos corredores do Ministério da Verdade...
Como não pretendia mentir-lhe, Winston respondeu com sinceridade que a odiava e que alimentava desejos de violentá-la e depois eliminá-la. Confessou que há duas semanas estivera a ponto de quebrar-lhe a cabeça, pois imaginou que ela fosse dos quadros da Polícia do Pensamento.
Júlia riu-se a valer... Achou graça que o seu comportamento e modo de se apresentar enganavam tão bem. Mas disse que era um disparate associá-la à Polícia do Pensamento, então quis que Winston confirmasse que era isso mesmo o que imaginava. Ele respondeu que talvez não fosse bem assim, mas admitiu que sua jovialidade e saúde o levaram a imaginar que fosse das mais fanáticas seguidoras do Partido.
A garota pareceu entender e traçou uma síntese do que mais ele podia ter pensado a seu respeito: “boa militante; pura de palavras e atos; assídua nas passeatas com suas faixas e palavras de ordem; atividades comunais de recreação”. Para ela, era de se admirar que alguém pudesse achar que poderia atuar como agente de combate a “ideocriminosos”. E que o denunciasse, levando-o à morte.
Winston confirmou que pensava mais ou menos assim e que ela tinha de concordar que havia muitas mulheres que atuavam daquela forma. Júlia não discordou e sentenciou que “a faixa escarlate da Liga Juvenil Anti-Sexo” passava a impressão... Arrancou no mesmo instante e lançou-a sobre a vegetação ao mesmo tempo em que a chamava de “porcaria”. Depois tirou uma barra de chocolate do bolso de seu macacão e a dividiu com o companheiro. Ele se admirou com o aroma e a qualidade do acabamento do invólucro prateado, algo de qualidade e nada comparado ao que era fornecido pelo regime, “em papel pardo-fosco, e o chocolate sempre quebradiço, com gosto de fumaça de lixo”.
O petisco era algo raro, mas Winston tinha certeza de que já havia experimentado algo parecido... O perfume e o sabor traziam-lhe “recordações que não podia precisar, mas que eram poderosas e perturbadoras”. Quis saber onde ela havia conseguido.
Júlia contou que tinha sido no mercado negro... Respondeu como se estivesse falando de algo natural. Depois emendou que as pessoas a conheciam a partir do que enxergavam de seu “exterior”, alguém que se destacava nas competições, que havia sido “chefe de tropa nos Espiões”, que trabalhava voluntariamente “três noites por semana na Liga Juvenil Anti-Sexo” e que tinha uma militância exemplar pelas ruas de Londres... Nas passeatas sempre era vista ajudando a levar as maiores faixas, e com a fisionomia disposta e alegre.
Por fim, salientou que aquele seu modo de se comportar era a única maneira de “não correr perigo”.
(...)
Winston a ouviu com atenção enquanto saboreava seu pedaço de chocolate... Algo incrivelmente delicioso e que o levava a pensar a respeito da recordação que o incomodara, “algo que podia sentir, mas não reduzir a uma forma definida, como um objeto visto com o rabo do olho”. Concluiu que o melhor que tinha a fazer era tirá-la da cabeça... O que podia fazer se a única coisa que sabia a respeito daquela “reminiscência” era “que se tratava da lembrança de algum ato que gostaria de desfazer, mas não podia”?
Voltou-se para Júlia e disse que ela era bem jovem e que devia ter uns dez ou quinze anos a menos que ele. Perguntou o que vira nele para que se sentisse atraída. Ela respondeu que achou que devia se arriscar, pois tinha visto algo de diferente em sua cara. Emendou que tinha aptidão para “descobrir gente que não se adapta” e logo que o viu imaginou que devia ser “contra eles”.
Obviamente ela se referia aos maiorais do Partido, notadamente o Partido Interno... Winston espantou-se com o modo como ela vociferava com ódio e desdém em relação ao poder. Sossegou um pouco ao lembrar-se que estavam seguros naquela clareira... Depois problematizou a respeito da possibilidade de haver mesmo segurança “em alguma parte”.
Chamava a atenção o modo como Júlia não poupava palavrões ao se referir ao regime e ao Partido principalmente porque o procedimento era altamente desaconselhável para seus membros... O próprio Winston não proferia impropérios e xingamentos em voz alta, por isso espantava-se com o fato de a garota parecer incapaz de falar sobre o Partido Interno “sem usar os palavrões que se veem escritos a giz e a carvão em certas ruas escuras”.
Não podia dizer que a reprovasse... Pelo contrário! O modo como ela se comportava revelava toda sua revolta contra o sistema, assim, para ele, aquilo soava “natural e saudável”.
(...)
Retiraram-se da clareira e voltaram a caminhar pela alameda... Nos trechos em que era possível, andaram de braços envolvidos às cinturas um do outro. Para Winston, a ausência da faixa tornava a cintura de Júlia mais macia e “maleável”.
Falavam, mas era aos sussurros... Não demorou e alcançaram o fim do pequeno bosque, então a garota o fez parar, explicando que era melhor não avançarem mais, pois podia haver espiões à frente e desde que permanecessem protegidos pelas ramagens não corriam qualquer risco.
Leia: “1984”. Companhia Editora Nacional.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas