domingo, 21 de fevereiro de 2021

“Deus lhe pague”, peça de Joracy Camargo – o “amigo de infância” de Nancy reconhece a astúcia de seu oponente; uma conversa sobre a Grécia da época de Péricles apenas para confundir e provocar embaraços; um “Péricles da Silva” e a promessa de conversa amistosa


Péricles ouviu o velho dizer que “ser moço é ser forte” e que ele próprio era mais forte que o jovem amigo de sua esposa... Então não se conteve e decidiu provocar... Mas como é que, “velho assim”, podia fazer aquela última afirmação? O velho respondeu que apenas os animais irracionais se enfraquecem conforme envelhecem... E acrescentou que sem inteligência não se substitui a força bruta.
O rapaz assentiu ao mesmo tempo em que ouviu seu desafeto afirmar que as pessoas “não têm medo de um leão desdentado”... Evidentemente concordou, então o outro emendou que bem diferente é a situação quando se trata de encarar “um velho, cuja força moral e cuja inteligência ainda estejam vigorosas”.
Novamente o moço se viu em confronto intelectual e não pôde cravar com certeza que um tipo como o caracterizado pelo velho não provocasse “certo medo”... Dessa forma o velho ficou à vontade para sentenciar que não seria improvável que ele fosse “mais moço” do que Péricles... Na sequência perguntou se o jovem “amigo de infância de Nancy” era Péricles mesmo.
(...)
O rapaz se angustiou porque mais uma vez seu interlocutor o provocava com aquela história de personagem da antiga Grécia... Respondeu que já havia lhe dito que seu nome é Péricles... O velho pediu para que se sentasse e, dirigindo-se à mulher, anunciou que estavam “diante de Péricles”. Ela perguntou o que havia de tão extraordinário nisso...
Será que ela não se sentia num sonho? O velho quis saber... Nancy garantiu que não via nada de anormal na visita e, sendo assim, o marido só podia estar delirando. Ele afiançou que a visita o fazia reviver sua primeira encarnação, ninguém menos do que o filósofo Sócrates, que viveu durante o século de Péricles. Disse essas coisas e perguntou ao rapaz se não se lembrava dele.
O jovem amigo de Nancy logo imaginou que o velho tivesse algum problema mental... Respondeu que certamente se lembrava (como não!)... O velho prosseguiu perguntando se ele se lembrava de Fídias, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes, Hipócrates, Platão e Xenofonte... Péricles resolveu que devia continuar com o “jogo de faz de conta” e a tudo respondeu afirmativamente...
Então, o que tinha a dizer de Tucídides? O velho perguntou e o rapaz respondeu que nunca mais o vira... Nancy quis saber se seu companheiro e dono da casa estava falando sério. Ele continuou com as divagações dizendo que estavam diante de um grande homem, “estadista e guerreiro destemido”, o filho de Xantipo que vencera os persas em Mycale. Aliás, como estava o pai?
Sem saber bem o que dizer, Péricles respondeu um “está bom, obrigado”... O velho passou a fazer um discurso a respeito da grandiosidade da Atenas governada por Péricles, que sabia valorizar as artes. O mundo inteiro reconheceu o esplendor grego e sua civilização graças a ele. Quantos “imortais” despontaram a um só tempo!
Depois dessa falação, e fica evidente que o velho se animava ao falar sobre o mundo helênico, sua arte e filosofia, perguntou ainda à visita: “Mas, o senhor é Péricles mesmo?”.
(...)
O rapaz admitiu, “sou sim senhor!”... Nancy confirmou... O velho decidiu que tinham de comemorar, celebrar aquela noite. Retirou o chapéu e o casaco do outro e foi dizendo que, após a sua morte, a democracia ateniense o perseguiu e o processou, condenado à morte, bebeu cicuta para cumprir sua pena.
O moço considerou que devia continuar com a encenação e exclamou um espanto... O velho emendou que morrera “serenamente, como um justo”. Péricles afirmou que acreditava... Houve uma pausa e o velho perguntou uma vez mais: “Mas, o senhor é Péricles mesmo?”.
Dessa feita o rapaz respondeu que, sim, “Péricles da Silva, um seu criado!”... Da Silva? O velho revelou sua decepção e constatou que o tipo não era filho de Xantipo que vencera os persas.
O amigo de Nancy quis entender o motivo do desapontamento. O velho explicou que o grande ateniense chamava-se apenas Péricles e seu interlocutor era um “Da Silva”... Disse isso mudando o tom de voz... Pediu desculpa por não ter notado que o jovem era como várias pessoas que carregam nomes “ilustres” (citou exemplos: Florianos Peixotos de Castro; Ruys Barbosas de Almeida; Joaquins Nabucos de Souza...) sem se darem conta da biografia dos personagens da História do Brasil... Estivera falando sobre uma época esplendorosa dos gregos, no entanto se dava conta de que no momento presente “Século de Péricles” só podia ser referido como o século daquele “Da Silva” que ali estava.
Nancy o lembrou de que aquela visita era um seu “amigo de infância”... O velho concordou e garantiu que passariam a conversar como “bons amigos”.
Leia: “Deus lhe pague”. Ediouro.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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