quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – as últimas considerações de Sem Medo sobre o seu primeiro encontro com Ondina; atitude abusada de Vewê; ilusões sobre o caráter do jovem guerrilheiro; uma aposta infeliz; advertências escancaradas do Comissário contra a postura intempestiva do comandante

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/02/mayombe-de-pepetela-decepcao-nos-olhos.html antes de ler esta postagem:

Ainda sobre o episódio, Sem Medo admitia que Ondina teria sido uma “presa muito fácil”. Restava saber a razão pela qual ela se embrenhara naquele tipo de jogo de sensualidade. Talvez a moça tivesse a necessidade de julgar a si mesma. Poderíamos pensar que, para ele, as conquistas deviam ser mais difíceis. Mas ele mesmo esclarece que, especificamente com Ondina (“menina bem-educada”, nascida em bairro pobre e interessada em galgar patamares superiores), a peleja devia ser “natural e direta”, ou pelo menos mais trabalhosa.
Bem diferente seria se Ondina assumisse de uma vez que pretendia “conduzir o duelo” e a relação que dele se originasse... Sem Medo até entenderia também se o tal jogo tivesse como objetivo “retardar a captura” para “aumentar o prazer”. Mas ficou claro que estes não eram o seu caso.
(...)
O comandante estava em meio a estes pensamentos quando Vewê surgiu à sua frente... O “jovem parente” foi se sentando na cama onde ele havia se acomodado. Sem Medo não o considerou impertinente, mas perguntou-lhe se já não o via como um “papão”...
O jovem não entendeu... Então Sem Medo explicou que ele sequer havia pedido licença e foi se sentando como se estivesse na própria cama. Teria perdido o medo?
O rapaz não demonstrava grande confiança... Desde a janela outros guerrilheiros observavam a cena. Eles sequer ouviram o que Sem Medo havia dito, mas notaram que Vewê baixara o olhar dando a entender que aguardava a reprimenda. De sua parte, Sem Medo apenas pensou que aquilo era mal se o moço vinha com toda familiaridade apenas por achar-se no direito por ser parente. Por outro lado, se se tratasse de uma atitude resultante de autonomia de caráter, aquilo era bem visto por ele.
Sem Medo perguntou-lhe se achava que tinha mais direitos do que os demais apenas por serem primos. Vewê não respondeu, em vez disso falou que haveria uma transmissão da rádio em breve. O comandante o repreendeu, pois evidentemente sua pergunta se referia à situação provocada pelo rapaz naquele mesmo instante., então vociferou a mesma indagação num tom mais alto de voz.
Os que estavam à janela tornaram-se mais atentos à discussão. Dessa vez Vewê respondeu com toda firmeza que não pensava daquela maneira. Sem Medo perguntou-lhe o motivo de não ter pedido licença para se sentar à cama onde ele descansava.
O rapaz observou o grupo que os espiava pela janela e falou de modo que todos pudessem ouvi-lo que achava normal, assim como entenderia se o comandante fizesse o mesmo ao sentar-se em sua cama.
Sem Medo entendeu como positiva a postura do rapaz. Então sorriu e pensou que ele estava mais para onça, leopardo ou leão do que para cágado. Ficou contente porque teve certeza de que ele se tornaria um bom guerrilheiro. Na sequência o autorizou a proceder daquele modo a partir de então e sempre que quisesse.
(...)
Vewê assumiu postura triunfante no mesmo instante em que observava o burburinho que se iniciou entre os demais... Foi então que Sem Medo entendeu que a atitude do jovem em pouco ou nada era resultado de seu caráter ou autonomia. Na verdade, aquilo não passava de uma encenação de situação que havia apostado com os companheiros.
Sem Medo pôs-se a gritar com Vewê, exigindo que ele se retirasse imediatamente. A ordem era para que desaparecesse de sua frente.
Vewê saiu aterrorizado... Logo o Comissário Político interveio dizendo que o chefe não tinha nenhum direito de se dirigir a qualquer guerrilheiro daquela forma.
Sem Medo estava mesmo furioso. Olhou severamente para o outro enquanto pisoteava o resto de seu cigarro. O Comissário disse que não havia assistido ao ocorrido, mas desaprovava completamente a atitude do comandante.
Na sequência, Sem Medo levantou-se e a atmosfera tornou-se mais tensa... Os camaradas que a tudo observavam silenciosamente desde a janela ficaram na expectativa do desenrolar da discussão.
Sem Medo vociferou que Vewê era um impostor e como o Comissário não havia presenciado o ocorrido não podia interferir. Disse isso e se retirou nervosamente da sala.
Logo alguns dos homens cercaram o Comissário, mas todos se mantiveram calados... Mostraram-se decepcionados também com o fim do embate.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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