O Comissário não pôde discordar das palavras de Sem Medo a respeito da diferenciada condição que os militantes levados a postos de direção passavam a ter... Não havia dúvida que muitos deixavam a existência humilde (de operário ou camponês) logo que eram admitidos no movimento e começavam a se dar bem nos estudos teóricos.
Por outro lado, argumentou que admitir a condição de intelectual não significava muito... O que isso teria demais?
(...)
Sem Medo explicou que não tinha nada contra os
intelectuais, apesar de saber que muitos entre eles se diziam “anti-intelectuais”
e viviam negando a própria condição. Também ele não se sentia à vontade para aprová-los
ou desaprová-los. A única certeza que tinha era a de que não era correto dizer
que um partido dominado por intelectuais era proletário. Propagar uma mentira
dessas prejudicaria o movimento no futuro... Ele mesmo havia feito tal
prognóstico em sua fala anterior!
Deveria
se dizer que o Partido é liderado por “intelectuais revolucionários que
procuram fazer uma política a favor do proletariado”. A mentira não tinha a
menor condição de prosseguir porque o povo sempre percebe que não controla nenhum
partido e tampouco controla o governo. Disso resulta sempre a desconfiança e a
desmobilização.
Mais uma vez o Comissário Político apresentou um senão...
Disse que o comandante estava sendo parcial, pois, em sua opinião, desde que a
política desenvolvida pelo governo revolucionário fosse justa e melhorasse a
vida do povo, haveria progresso em relação à condição anterior à Revolução.
Sem
Medo respondeu que o camarada estava compreendendo bem o que ele queria dizer.
De fato, o que podiam fazer no momento era lutar pela independência do país.
Com isso esperavam melhorar a condição humana... Teriam de criar as estruturas
para implantar o Socialismo, e isso significaria nacionalizar minas, fazer a
reforma agrária, nacionalizar bancos, comércio exterior... Se tudo corresse com
um mínimo de erros, a condição de vida do povo melhoraria.
Mas
isso, por si só, é o Socialismo? É Estado proletário?
(...)
Sem Medo destacou que precisavam colocar fim aos rótulos.
Várias denominações relacionadas ao movimento
revolucionário deviam ser desmistificadas. E por quê?
Fatalmente se desenvolveria uma ditadura e a democracia
seria impossibilitada... Poder-se-ia discutir se de fato a ditadura é
necessária e inevitável. De sua parte, não conseguia vislumbrar outra
realidade. Então era o caso de buscarem coerência no discurso... Não
conseguiriam atingir em 100% o que almejavam, então, por que continuar a mentir
para o povo?
O
Comissário Político fez a sua reflexão e disparou de volta outra pergunta...
Como é que se diria ao povo que dos objetivos buscados conseguiram atingir
apenas parte deles, uns 50%? Isso provocaria desmobilização e descrença!
(...)
Era exatamente a este ponto que o comandante queria
chegar. Sem disfarçar o ponto de vista que vinha sustentando, disse que o
camarada Comissário e os demais do grupo do qual participava pensavam mesmo que
não podiam dizer a verdade para o povo porque temiam o risco de
desmobilização... Viviam dizendo que era preciso esperar e não poupavam os
exageros na divulgação de resultados só para manter viva a chama da esperança
em tempos melhores.
Sem Medo disse isso e sustentou que, se estivesse nas
últimas, gostaria que lhe dissessem a verdade. Os que mentem num caso desses
tentam se justificar dizendo que querem evitar que “o moribundo não se desanime”
e termine apelando para o suicídio.
A
metáfora bem construída sugeria que não faltariam os que prometessem a cura ou
os que (como os religiosos) anunciassem “a salvação no outro mundo”. Então era
mais ou menos a mesma coisa: o “paraíso” que os revolucionários anunciavam ao
povo estava no futuro... E este é “tão abstrato quanto o Paraíso cristão”.
O camarada Comissário respondeu que as palavras de Sem
Medo revelavam os “problemas metafísicos” que não o deixavam em paz. Este nada
disse, apenas acariciou o rifle que estava acomodado junto ao seu joelho.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto