sábado, 9 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – o jovem Mundo Novo e o comandante Sem Medo têm pontos de vista diferentes sobre as “ações desinteressadas”; um debate da empolgação da formação teórica com a experiência do combate

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/02/mayombe-de-pepetela-ainda-o-dialogo.html antes de ler esta postagem:

Mundo Novo foi questionado pelo comandante Sem Medo. O rapaz era idealista e acreditava que entre os homens havia os abnegados que tudo enfrentavam unicamente para melhorar as condições do povo.
Como vimos, o chefe relacionou aquela convicção a uma “concepção religiosa da política” e advertiu que, também entre os que se dedicavam à causa revolucionária, ela podia levá-los a cometer os maiores erros. Em síntese, Sem Medo entendia que nenhuma ação é desinteressada.

O rapaz quis debater, então citou o exemplo do próprio comandante que estava a treinar os jovens guerrilheiros... Perguntou-lhe o que ganhava pessoalmente com toda aquela dedicação. Vemos Sem Medo com sua costumeira calma estirar-se no capim e acender um cigarro para em seguida responder que poderia dizer que tinha pena dos moços que chegaram mal preparados à zona de conflito... Não havia nenhum exagero em dizer que estavam como que candidatos à morte logo no primeiro combate! Outra resposta aceitável seria justificar que tinha de preparar novos soldados para que a guerrilha triunfasse mais rapidamente... Mas então se poderia perguntar os motivos de sua intenção no avanço do movimento e não faltaria quem dissesse que o objetivo era sempre o de tornar Angola independente dos tugas.
Sem Medo quis mostrar que, qualquer que fosse a resposta, havia sempre um interesse pessoal embutido. E isso era normal, pois o ser humano tem os seus interesses. Poderia dizer que as atividades físicas e a falação que preparara para os rapazes era uma maneira de “esbofetear” os civis de Dolisie e deixar claro que faziam mal a tarefa de preparar novos guerrilheiros para o Mayombe.
(...)
Os jovens se aproximaram assim que perceberam que o chefe fumava tranquilamente. Este ordenou que retornassem imediatamente aos exercícios.
Mundo Novo refletiu sobre as palavras do comandante e perguntou-lhe se não acreditava mesmo na existência de militantes “totalmente desinteressados”. Sem Medo respondeu que talvez existissem alguns casos raríssimos e citou o Comissário Político, mas deixou claro que não acreditava que alguém pudesse ser desinteressado permanentemente. Dessa forma, as ações desinteressadas são apenas episódicas.
Mundo Novo quis saber se até Lenin devia ser considerado a partir daquela conceituação... Sem Medo respondeu que como não conhecera Lenin não tinha como falar a seu respeito. Podia avaliar aqueles de seu convívio e cravar que jamais vira alguém totalmente desinteressado em suas ações. Na sequência observou que o rapaz não devia envolver os nomes dos “grandes homens” na conversa como que a impor consistência aos argumentos. Lembrou que essa tática era “truque de político”.
Aconteceu que Mundo Novo citou ainda Che Guevara e Henda. Emendou que havia os incontáveis anônimos e que pensar como o comandante seria deixar de crer e confiar na “generosidade humana”. Seria um grande pessimista se lhe fosse excluída a “capacidade de sacrifício da humanidade”.
A questão era saber se o modo de pensar de Sem Medo anulava a luta coerente... O comandante entendeu o raciocínio do jovem camarada. Este prosseguiu dizendo que só se lutava com coerência se se depositasse “um mínimo de otimismo e confiança nos homens”. E mais! Disse que o seu depoimento e o do chefe eram uma síntese da experiência pessoal de cada um. Sendo assim, concluiu Mundo Novo, não via como Sem Medo pudesse combater sem ser um otimista.
Vê-se que o Comandante estava interessado na opinião do guerrilheiro idealista que evidentemente trazia consigo a inspiração dos livros e das aulas de História. Quis saber sua opinião a respeito do que ele (alguém que não acreditava em “desinteresse integral” dos homens) poderia fazer. Mundo Novo explicou que não se tratava de sentenciar que Sem Medo não combatia. Mas, em sua opinião, as situações de maior dificuldade lhe seriam demasiadamente pesadas e fatalmente o levariam ao cansaço e à desistência. Isso não ocorreria se carregasse consigo o otimismo. Para suportar os reveses seria necessária “fé profunda”.
(...)
Sem Medo ouviu o jovem idealista e pensou em sua ousadia... Mundo Novo chegara há pouco ao movimento e falava como se já tivesse experimentado todo tipo de vicissitude. Sequer travara combate mais sério de fogo aberto e se colocava num degrau de resistência acima do próprio chefe.
Mas era assim mesmo... Os jovens retornavam de estudos na Europa convictos de que a teoria do marxismo os fazia perfeitos para a prática. Certamente viam os textos como cartilha ou “fórmula mágica”... Sem Medo entendeu que havia petulância nas palavras de Mundo Novo, mas não podia deixar de considerar sua desenvoltura para expor suas opiniões para o comandante... Não era de todo mal, havia potencial e os tropeços que certamente enfrentaria o tornariam melhor.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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