terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – a decepção nos olhos de Ekuikui assemelha-se ao sentimento de impotência do Comissário; lembranças, Ondina não era completamente estranha ao Sem Medo

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/02/mayombe-de-pepetela-sem-medo-explica.html antes de ler esta postagem:

Em síntese, podemos dizer que Sem Medo disse ao Comissário Político que ele precisava conhecer bem a mulher que amava para merecê-la... Como vimos, o comandante havia alertado que é necessário “estudar o terreno e recriar a tática” (numa referência aos erros dos revolucionários que estudam as teorias sem levarem em conta os terrenos em que atuam; recorreu a essa “alegoria” por se tratar de assunto de mais fácil entendimento para o guerrilheiro).
Mas depois da muita explicação, vemos o Comissário suspirando e deixando escapar que era tudo “muito complicado”.
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Naquele mesmo instante, Ekuikui passou em direção à Base. O rapaz havia saído para caçar e retornava sem nada... Sua expressão era de fracasso e vergonha no rosto... Mais ou menos a mesma do Comissário Político.
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De volta para a Base, Sem Medo notou a movimentação dos que deixavam as aulas e dos que preparavam o fogo para a janta. Ele observou que se não resolvessem o problema da alimentação teria de ir a Dolisie tratar pessoalmente com o André. O Comissário sugeriu que, nesse caso, ele poderia contatar a Ondina e conversar com ela para ajudá-los a melhorar o relacionamento.
O rapaz parecia suplicar... Sem Medo respondeu que faria isso se tivesse a oportunidade. Em suas reflexões, imaginou que o camarada não suportaria ouvi-lo dizer que apenas se (ele, Sem Medo) relacionando mais intimamente com a mulher teria condições de entendê-la. Certamente isso encerraria a amizade dos dois! Mas os desabafos parecem mostrar que não era totalmente impossível que o Comissário fosse daqueles capazes de entregar a mulher ao Sem Medo para que este cuidasse dela.
Depois de algum tempo, o comandante calculou que, neste caso, tudo poderia ocorrer e evidentemente não poderia avaliar qual seria a reação do camarada. Ao menos de uma coisa ele tinha certeza, a de que não se interessava por Ondina.
(...)
Entraram na sala de comando, onde os rapazes discutiam a respeito do último número de jornal do movimento. O assunto era da alçada do Comissário, que logo passou a participar do debate.
(...)
Sem Medo se deitou e passou a refletir enquanto tragava o forte cigarro. Pensou em Ondina... Será mesmo que a moça não despertava o menor interesse? É claro que o fato de ela ser noiva do camarada Comissário contava, mas não era isso o que levava em consideração... Na verdade já fazia muito tempo que não acreditava em “pureza da amizade”... Mulheres sempre foram a causa de muitos desentendimentos. Ele pensou na morte do Abel descrita no livro de Gênesis... Provavelmente a motivação do irmão tenha sido uma mulher.
Pensando especificamente em Ondina era impossível não imaginar a “arte” que ela devia aprontar numa cama... A formação em Luanda dava-lhe ares de superioridade. Ele mesmo podia testemunhar que a moça andava numa atmosfera de autossuficiência. Ao passar pelos homens, fitava-os como se os intimasse e calculasse-lhes o valor.
Ninguém sabia que certa vez ela o desafiara com o olhar. Eles nem se conheciam... Aconteceu em Dolisie, onde ela acabara de chegar...Sem Medo vinha de Kimongo (a Base se localizava lá por aquele tempo)... Assim que a viu, deitou-lhe um “olhar apreciador”... No mesmo instante ela o convidou para um café em seu quarto. Na ocasião, Ondina usava uma saia curta e provocativa. Sem Medo a fitou por inteiro e encarou o seu olhar que não se desviava... Depois de nova “inspeção”, passando por seios e coxas, os olhos de Sem Medo se detiveram na xícara de café. Ondina esperava perturbá-lo, mas ele não demonstrou nenhuma agitação, então começaram a conversar sobre Luanda e personagens diversos... Durante todo o tempo ela o encarou nos olhos, certamente buscando decifrá-lo.
É claro que Sem Medo admirou a formosura da moça, mas manteve-se indiferente... Isso havia sido há muito tempo e ele jamais aceitou outros desafios como aquele. O certo é que mesmo depois de se tornar noiva do Comissário, Ondina procurou ocasiões para tentá-lo novamente.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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