Em síntese, podemos dizer que Sem Medo disse ao Comissário Político que ele precisava conhecer bem a mulher que amava para merecê-la... Como vimos, o comandante havia alertado que é necessário “estudar o terreno e recriar a tática” (numa referência aos erros dos revolucionários que estudam as teorias sem levarem em conta os terrenos em que atuam; recorreu a essa “alegoria” por se tratar de assunto de mais fácil entendimento para o guerrilheiro).
Mas depois da muita explicação, vemos o Comissário suspirando e deixando escapar que era tudo “muito complicado”.
(...)
Naquele mesmo instante, Ekuikui passou em direção à Base.
O rapaz havia saído para caçar e retornava sem nada... Sua expressão era de
fracasso e vergonha no rosto... Mais ou menos a mesma do Comissário Político.
(...)
De volta para a Base, Sem Medo notou a movimentação
dos que deixavam as aulas e dos que preparavam o fogo para a janta. Ele
observou que se não resolvessem o problema da alimentação teria de ir a Dolisie
tratar pessoalmente com o André. O Comissário sugeriu que, nesse caso, ele
poderia contatar a Ondina e conversar com ela para ajudá-los a melhorar o
relacionamento.
O
rapaz parecia suplicar... Sem Medo respondeu que faria isso se tivesse a
oportunidade. Em suas reflexões, imaginou que o camarada não suportaria ouvi-lo
dizer que apenas se (ele, Sem Medo) relacionando mais intimamente com a mulher
teria condições de entendê-la. Certamente isso encerraria a amizade dos dois!
Mas os desabafos parecem mostrar que não era totalmente impossível que o
Comissário fosse daqueles capazes de entregar a mulher ao Sem Medo para que
este cuidasse dela.
Depois de algum tempo, o comandante calculou que, neste
caso, tudo poderia ocorrer e evidentemente não poderia avaliar qual seria a
reação do camarada. Ao menos de uma coisa ele tinha certeza, a de que não se
interessava por Ondina.
(...)
Entraram
na sala de comando, onde os rapazes discutiam a respeito do último número de
jornal do movimento. O assunto era da alçada do Comissário, que logo passou a
participar do debate.
(...)
Sem
Medo se deitou e passou a refletir enquanto tragava o forte cigarro. Pensou em
Ondina... Será mesmo que a moça não despertava o menor interesse? É claro que o
fato de ela ser noiva do camarada Comissário contava, mas não era isso o que
levava em consideração... Na verdade já fazia muito tempo que não acreditava em
“pureza da amizade”... Mulheres sempre foram a causa de muitos desentendimentos.
Ele pensou na morte do Abel descrita no livro de Gênesis... Provavelmente a
motivação do irmão tenha sido uma mulher.
Pensando
especificamente em Ondina era impossível não imaginar a “arte” que ela devia
aprontar numa cama... A formação em Luanda dava-lhe ares de superioridade. Ele
mesmo podia testemunhar que a moça andava numa atmosfera de autossuficiência.
Ao passar pelos homens, fitava-os como se os intimasse e calculasse-lhes o
valor.
Ninguém sabia que certa vez ela o desafiara com o olhar.
Eles nem se conheciam... Aconteceu em Dolisie, onde ela acabara de chegar...Sem
Medo vinha de Kimongo (a Base se localizava lá por aquele tempo)... Assim que a
viu, deitou-lhe um “olhar apreciador”... No mesmo instante ela o convidou para
um café em seu quarto. Na ocasião, Ondina usava uma saia curta e provocativa.
Sem Medo a fitou por inteiro e encarou o seu olhar que não se desviava...
Depois de nova “inspeção”, passando por seios e coxas, os olhos de Sem Medo se
detiveram na xícara de café. Ondina esperava perturbá-lo, mas ele não
demonstrou nenhuma agitação, então começaram a conversar sobre Luanda e
personagens diversos... Durante todo o tempo ela o encarou nos olhos,
certamente buscando decifrá-lo.
É claro que Sem Medo admirou a formosura da moça, mas
manteve-se indiferente... Isso havia sido há muito tempo e ele jamais aceitou
outros desafios como aquele. O certo é que mesmo depois de se tornar noiva do
Comissário, Ondina procurou ocasiões para tentá-lo novamente.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto