sábado, 23 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – o Comissário Político recebe Sem Medo com um reconfortante café; os dois líderes se retiram para conversar; pontos de vistas diferentes sobre a exposição das divergências entre os membros do comando; mais uma vez o comandante faz metáfora com aspectos da religião para expor o seu ponto de vista

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/02/mayombe-de-pepetela-lutamos-e.html antes de ler esta postagem:

O retorno à Base foi mesmo marcado pela intensa tempestade e pelos tropeços dos caminhos fechados pela vegetação selvagem.
Sem Medo avançava à frente e isso animava Muatiânvua e Lutamos a também prosseguir. De sua parte, o comandante ansiava pelo encontro com o Comissário. Ele sabia que este também o aguardava com um café fresco e quente.
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De fato, o Comissário os aguardava e havia mesmo preparado um bom café para o chefe. Serviu-lhe uma generosa caneca... Após a bebida reconfortante, Sem Medo fumou e trocou de roupa. Não demorou e os dois estavam sentaram-se na cama e passaram a trocar ideias a respeito do desentendimento do dia anterior.
Era o Comissário quem tinha necessidade de conversar... Sem Medo foi dizendo que não valia a pena... O Comissário disse-lhe que a comida já estava fria e que ele precisava se alimentar depois da longa patrulha. Sem esconder uma ponta de contrariedade, Sem Medo sugeriu que se retirassem para conversarem primeiro e que jantaria mais tarde.
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Já não chovia, por isso deixaram a sala do Comando... A atmosfera externa era das mais agradáveis... Apesar de manifestar a necessidade de conversar, o Comissário não estava muito à vontade para encarar a franqueza do amigo.
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Sem Medo manteve-se calado e pensou que, naquele caso, discutir era o mesmo que “desenterrar o que já morreu”... Por que as pessoas gostam de se “flagelar com o passado”? Melhor seria se se dispusessem a “virar a página” e dar prosseguimento à vida... Pensou que, a rigor, poucos são os razoavelmente resolvidos em relação a isso. Muitos vivem pautando o presente pensando no futuro e parecem ser incapazes de “sofrer ou gozar” as circunstâncias vivenciadas “no agora”... Quando sofrem pensam na consolação de que o que lhes está reservado “no amanhã” é melhor. E isso é o que aprenderam com a religião. Não conseguem perceber os momentos felizes sem que os sintam também carregados da fatalidade do declínio vindouro.
Definitivamente sentia que esse não era o seu caso. Segundo suas próprias palavras, ele procurava basicamente “viver o presente”... Mas estava claro que o camarada Comissário era de outra estirpe e insistia em manter-se indeciso entre o que já se passara e a incerteza do amanhã. Pelo visto ainda levaria um bom tempo até que compreendesse a vida.
(...)
Os dois colocaram-se sobre um velho tronco deitado bem à entrada da Base. Tinham as armas posicionadas junto ao joelho... Ao longe, Muatiânvua os observava com atenção.
O Comissário foi logo pedindo desculpas pela discussão do dia anterior. Admitiu que não agira bem ao chamar-lhe a atenção diante dos guerrilheiros, pois dessa forma o desautorizava diante dos subordinados. Sem Medo respondeu que não havia o que desculpar porque realmente se excedera com o Vewê e o tratara mal. O outro emendou que apesar disso não estava certo colocar a discussão em público.
Sem Medo insistiu que os camaradas tinham de se habituar a ouvir os do Comando criticarem-se abertamente.
A conversa seguiu amistosa. O Comissário sentenciou que agira sem pensar e que o correto seria discutir no Comando ou “em privado”. A respeito dessa ideia de preservar-se a autoridade escondendo-se as rixas entre os responsáveis, Sem Medo respondeu que havia nela um mal, pois dava-se a impressão de que tudo sempre se encaminhava sem rusgas.
Em vez de tornar públicos os diferentes pontos de vista ao grupamento, o Comando recolhia-se à “capelinha”. Sem Medo ressaltou que ele não procedia dessa forma, mas destacou que o Comissário Político e o Chefe de Operações tinham este hábito... Algo como o cristão católico quando busca o padre no recolhimento do confessionário para se acertar com Deus.
E por que os camaradas falavam pelos cantos a respeito dos desentendimentos no meio do Comando? Sem Medo respondeu que isso acontecia exatamente porque os seus dois companheiros de liderança insistiam em não abrir as discussões ao coletivo. Se isso ocorresse com frequência, todos já estariam habituados.
O Comissário falou que aquele princípio não era correto. Então Sem Medo explicou que a sua observação se relacionava muito mais a uma “necessidade de sentir-se culpado”. Disse que talvez o seu interlocutor esperasse ser advertido, mas, de sua parte, isso não ocorreria. Uma vez mais relacionou a existência cotidiana e os dramas comuns das pessoas aos procedimentos da religião.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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