quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – Ekuikui e Muatiânvua de vigília e torcendo pelo entendimento dos líderes; a crença de Sem Medo na luta e o reconhecimento de que talvez não fosse possível obter tudo o que desejavam; considerações sinceras sobre as aspirações, ou a falta delas, para quando viesse a independência; da solidão dos que lutam

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/02/mayombe-de-pepetela-nao-ha-partido.html antes de ler esta postagem:

A noite avançara...
Na casa do Comando, os guerrilheiros ouviam o rádio e repercutiam as últimas informações aos risos abafados.
Muiatiânvua e Ekuikui permaneciam ainda à distância e observando o vulto dos dois homens acomodados no tronco à entrada da Base. Eventualmente conseguiam captar uma ou outra palavra e assim calculavam o quanto o “clima de confiança” estava mais próximo ou distante.


(...)

Sem Medo respondeu que todos pensam de alguma maneira na morte, que é algo relacionado à metafísica. Mas ele queria que o camarada entendesse que suas palavras eram as que julgava as mais adequadas para transmitir o que pensava. De sua parte, esperava que o Comissário compreendesse algo que o jovem Mundo Novo não conseguia admitir... De sua parte, não sairia do movimento ainda que soubesse que a luta não conseguisse estabelecer o “paraíso prometido” em 100%.
O Comissário Político revelou que havia conversado com Mundo Novo e lhe dissera que tinha certeza de que o comandante não recuaria por se tratar de homem que alimentava razões sinceras na luta.
Sem medo quis que o Comissário citasse as referidas “razões sinceras”... O outro não conseguiu enumerá-las, mas sabia que elas se relacionavam a “razões humanas”, “crença na necessidade da justiça”, “ódio à opressão”... Todas elas pertencentes também a todos do movimento. A única diferença era em relação ao que esperavam do futuro. Disse isso e quis saber como Sem Medo via a si mesmo na Angola independente.
A resposta provocou certo abalo no Comissário, pois o comandante disse que simplesmente não se via na Angola do futuro... A pergunta seguinte foi a respeito de onde mais ele gostaria de trabalhar, se possuía outras ambições... Sem Medo disse que não se via como um quadro político da mesma forma que via aos demais (inclusive o Comissário), então emendou que talvez se engajasse em nova luta em um outro país... Podia ser mesmo que seu futuro lhe reservasse a cadeia! Apesar de não se ver na Angola independente, não se sentia impedido de lutar por ela.
(...)
O Comissário Político passou a falar sobre a ocasião em que viu Sem Medo pela segunda vez. Ainda não se conheciam, pois era ainda novo no movimento e recém-chegado de Kinshasa, havia chegado ao bar onde o Comandante estava só e tomando cerveja. O ambiente era dos mais barulhentos, mas nada, nem o assédio das garotas, o tiravam da introspecção. Todos o reconheciam como chefe e o próprio Comissário já o tinha visto no bureau, oportunidade em que pudera constatar que se tratava de homem solitário e de forte personalidade.
A solidão era uma das marcas do Sem Medo, e o Comissário manifestou que isso intimidava as pessoas e ao mesmo tempo as levava a serem sinceras com ele.
Sem Medo respondeu que todos os camaradas tinham algo de solidão encravado no ser. Todos eram os “solitários do Mayombe”... Afinal, por que gostavam de viver ali? No fundo sentiam-se bem com a solidão proporcionada pela “multidão de árvores”. Era algo como o que ele mesmo experimentara quando passou algum tempo na Europa e o que mais gostava era de perambular em meio à multidão nos horários em que o trabalho se encerrava. Andava anônimo e, embora estivesse cercado por toda gente, sentia-se singular. Talvez por isso não gostasse das cidades menores que não podiam proporcionar situações como aquela.

(...)

Muatiânvua disse a Ekuikui que tudo parecia ir bem entre Sem Medo e o Comissário Político. Definitivamente não discutiam... Ekuikui sugeriu encerrarem a vigília, mas o companheiro respondeu que era bom ficarem para “tomar conta”, pois a noite estava bem escura.
Teoria apareceu e perguntou o que os dois estavam fazendo. Muatiânvua explicou que “estavam fazendo guarda” e apontou na direção dos dois chefes.
O professor observou que enquanto boa parte do grupamento esperava que eles se desentendessem, os camaradas permaneciam ali torcendo exatamente pelo contrário. Disse isso e se sentou também.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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