A noite avançara...
Na casa do Comando, os guerrilheiros ouviam o rádio e repercutiam as últimas informações aos risos abafados.
Muiatiânvua e Ekuikui permaneciam ainda à distância e observando o vulto dos dois homens acomodados no tronco à entrada da Base. Eventualmente conseguiam captar uma ou outra palavra e assim calculavam o quanto o “clima de confiança” estava mais próximo ou distante.
(...)
Sem Medo respondeu que todos pensam de alguma maneira
na morte, que é algo relacionado à metafísica. Mas ele queria que o camarada
entendesse que suas palavras eram as que julgava as mais adequadas para
transmitir o que pensava. De sua parte, esperava que o Comissário compreendesse
algo que o jovem Mundo Novo não conseguia admitir... De sua parte, não sairia
do movimento ainda que soubesse que a luta não conseguisse estabelecer o “paraíso
prometido” em 100%.
O
Comissário Político revelou que havia conversado com Mundo Novo e lhe dissera
que tinha certeza de que o comandante não recuaria por se tratar de homem que
alimentava razões sinceras na luta.
Sem medo quis que o Comissário citasse as referidas “razões
sinceras”... O outro não conseguiu enumerá-las, mas sabia que elas se
relacionavam a “razões humanas”, “crença na necessidade da justiça”, “ódio à
opressão”... Todas elas pertencentes também a todos do movimento. A única
diferença era em relação ao que esperavam do futuro. Disse isso e quis saber
como Sem Medo via a si mesmo na Angola independente.
A
resposta provocou certo abalo no Comissário, pois o comandante disse que
simplesmente não se via na Angola do futuro... A pergunta seguinte foi a respeito
de onde mais ele gostaria de trabalhar, se possuía outras ambições... Sem Medo
disse que não se via como um quadro político da mesma forma que via aos demais
(inclusive o Comissário), então emendou que talvez se engajasse em nova luta em
um outro país... Podia ser mesmo que seu futuro lhe reservasse a cadeia! Apesar
de não se ver na Angola independente, não se sentia impedido de lutar por ela.
(...)
O
Comissário Político passou a falar sobre a ocasião em que viu Sem Medo pela
segunda vez. Ainda não se conheciam, pois era ainda novo no movimento e recém-chegado
de Kinshasa, havia chegado ao bar onde o Comandante estava só e tomando cerveja.
O ambiente era dos mais barulhentos, mas nada, nem o assédio das garotas, o
tiravam da introspecção. Todos o reconheciam como chefe e o próprio Comissário
já o tinha visto no bureau, oportunidade em que pudera constatar que se tratava
de homem solitário e de forte personalidade.
A solidão era uma das marcas do Sem Medo, e o Comissário
manifestou que isso intimidava as pessoas e ao mesmo tempo as levava a serem
sinceras com ele.
Sem Medo respondeu que todos os camaradas tinham algo de
solidão encravado no ser. Todos eram os “solitários do Mayombe”... Afinal, por
que gostavam de viver ali? No fundo sentiam-se bem com a solidão proporcionada
pela “multidão de árvores”. Era algo como o que ele mesmo experimentara quando
passou algum tempo na Europa e o que mais gostava era de perambular em meio à
multidão nos horários em que o trabalho se encerrava. Andava anônimo e, embora estivesse
cercado por toda gente, sentia-se singular. Talvez por isso não gostasse das
cidades menores que não podiam proporcionar situações como aquela.
(...)
Muatiânvua disse a Ekuikui que tudo parecia ir bem entre
Sem Medo e o Comissário Político. Definitivamente não discutiam... Ekuikui
sugeriu encerrarem a vigília, mas o companheiro respondeu que era bom ficarem
para “tomar conta”, pois a noite estava bem escura.
Teoria
apareceu e perguntou o que os dois estavam fazendo. Muatiânvua explicou que “estavam
fazendo guarda” e apontou na direção dos dois chefes.
O professor observou que enquanto boa parte do grupamento
esperava que eles se desentendessem, os camaradas permaneciam ali torcendo
exatamente pelo contrário. Disse isso e se sentou também.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/02/mayombe-de-pepetela-sem-medo-fala-de.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto