O Comissário Político seguiu dizendo que o seu desafeto, o Chefe de Operações, tratou de reunir-se com o pessoal kimbundo durante toda tarde. Conversou também com o Teoria mais isoladamente.
Sem Medo observou que talvez o professor fosse mais afetado pelo racismo do que pelo tribalismo... O camarada Comissário ressaltou que o caso dele podia ser mais de ambição do que qualquer outra coisa...
O Chefe de Operações havia falado à parte também com o Mundo Novo. Depois dessa informação, o Comissário quis saber a opinião de Sem Medo sobre este rapaz.
O comandante afirmou que não esperava que o Mundo Novo se intrometesse naquelas intrigas, pois logo perceberia o caráter tribalista delas. Disse também que os muitos estudos teóricos deixavam o jovem um pouco desnorteado, mas logo ele descobriria que a maior parte das “complicações” surgem em sua cabeça por obra das inquietações que alimentava. O que mais dizer a respeito do moço? Sem Medo admitiu que tinha o Mundo Novo em boa consideração, apesar de o rapaz insistir em classificá-lo como “pequeno-burguês”. O que podia fazer? Disse que, em sua opinião, o jovem era “o mais alto expoente” entre os dogmáticos dos quais o Comissário era parte.
(...)
Voltando às intrigas entre os camaradas...
Para
Sem Medo, não havia o que fazer... O negócio era “deixar andar” e permitir que
as coisas se ajeitassem. O Comissário salientou que não era uma “reunião geral”
que resolveria a situação. Talvez fosse melhor deixar que todos pensassem que,
de fato, existiam incompatibilidades entre ambos... Outra missão ocorreria e
então os ânimos já seriam outros.
Sem Medo concordou, mas ressaltou a dificuldade de
organizarem nova missão até porque não tinham nem mesmo o que comer. Para o
Comissário, a saída seria enviar o Chefe de Operações a Dolisie, já que não era
conveniente que nenhum dos dois se retirasse da Base.
Entraram
em acordo de que o Chefe de Operações era o mais indicado para a tarefa, e
levaram em consideração que ele poderia ficar mais de uma semana em Dolisie,
mas o mais importante era que retornasse de lá com os alimentos.
O grande problema da falta de atividades é que ela
levava os homens a imaginarem cenários de conturbações diversas no grupamento.
O Comissário lembrou que Milagre costumava dizer que, como a “guerra está fria”,
a lei também “fica fria”... O povo de Cabinda só começaria a aderir quando
notasse que o movimento esquentava a guerra sobre os tugas... Então as rixas Tribalistas
desapareceriam.
(...)
Havia
mais o que falar, mas o Comissário lembrou que o amigo ainda não tinha
jantado... Sem Medo admitiu que a conversa abrira-lhe o apetite. E para
responder à altura, o outro disse que o entendimento a que haviam chegado
levantava-lhe o moral.
Os dois se retiraram para a cabana do Comando... Seguiram
rindo e fumando...
Muatiânvua e os camaradas Teoria e Ekuikui também se
recolheram.
(...)
Na sequência temos uma narrativa particular do
guerrilheiro Muatiânvua. Este recurso de Pepetela é interessante porque leva o
leitor a compreender a ruptura entre a perspectiva anterior (do entendimento entre
Sem Medo e o Comissário) e o ponto de vista de um guerrilheiro que, como
pudemos notar, não nutria a menor simpatia pelo tribalismo e divergências dele
resultantes.
(...)
O rapaz explica que sua origem era marcada pela mestiçagem.
Seu pai era bailundo e trabalhava para a Diamang (sobre esta companhia ver
ainda https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2018/05/mayombe-de-pepetela-mais-sobre-o.html)... A
mãe era do Songo (uma vila angolana) e tinha antepassados kimbundos. O pai
morreu de tuberculose contraída nas minas. Muatiânvua contava apenas um ano em
Luanda quando se tornou órfão.
Temos
de concordar que não tinha como não considerar que o pai entregara a vida ao
trabalho de cavar a terra para explorar pedras valiosas. Não era exagero
considerar que o esforço lhe sugara a vida sem que sequer um salário restasse à
pobre família.
Na próxima postagem conheceremos mais do Muatiânvua...
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto