domingo, 24 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – sobre a prática militante e fanática como a dos religiosos; da necessidade de alguns de manterem a capelinha isolada do “baixo clero”; Sem Medo se considera um anarquista, um “sem partido” que sofreria a perseguição dos altos dirigentes após o triunfo da revolução; falta entender que “o socialismo é obra de um dia ou da vontade de mil homens”

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/02/mayombe-de-pepetela-o-comissario_23.html antes de ler esta postagem:

O Comissário observou que Sem Medo era insistente em sua tática de comparar a realidade revolucionária aos procedimentos comuns às pessoas religiosas.
Sem Medo disse que a metáfora era válida porque as lideranças e diversos outros quadros do movimento se enchiam de “religiosidade”... Na verdade, concluiu, isso é mais comum do que se pensa, e ocorre nos mais diversos partidos. Disse que assim como os “pecadores” procuram o padre no reservado do confessionário, os militantes escapam das críticas que podem surgir no grupo e jamais aceitam se reconhecerem como criaturas passíveis de erros diante dos pares. Dessa forma só podiam se abrir aos superiores, os ungidos e preparados para dar-lhes as orientações.
É verdade que há também os que buscam a todo custo enxergarem-se como imperfeitos e carregados de equívocos que não cometeram, neste caso, assim como o religioso que chega ao confessor e “inventa pecados” para se mostrar mesquinho e necessitado do perdão de Cristo, o militante procede do mesmo modo para se convencer de que se trata de sujeito exemplar e imprescindível ao movimento.
(...)
Esclarecendo melhor, Sem Medo disse que o Comissário Político não percebia que fazia do Partido (especificamente o Comando e as esferas superiores) uma capela. Disse isso e emendou que a situação carregava em si um ciclo vicioso... Era como o sacristão e o padre que se confessam um ao outro na sacristia, onde um fica sabendo que o outro o trai ao encontrar-se com suas amantes. Haveria como expor uma aberração dessas aos fiéis?
O Comissário não concordou com a ideia de que faz do Partido uma capela... Sem Medo respondeu que não devia ser, mas é o que acaba ocorrendo sempre que os dirigentes deixam de abrir as discussões e eventuais erros aos militantes que sustentam a causa. Ele entendia que a mudança estava muito distante porque os dirigentes que se abriam dessa foram eram sempre colocados em desgraça... Deu o exemplo do que ocorreu com Lutero. E isso pode ter sido só para não fugir do método de relacionar a situação que vivenciavam no movimento com a religião.
(...)
Mas será que tudo devia ser exposto ao povo? Sem Medo respondeu que ao menos os guerrilheiros deviam ter acesso às polêmicas... Afinal eles são a “vanguarda do povo”. Na sequência perguntou como é que as lideranças podiam falar tanto de “massas populares” se viviam a “esconder tudo do povo”. Pelo menos era assim entre os principais quadros, aqueles que estudavam o marxismo...
O Comissário não aceitou ser enquadrado no modelo... Então Sem Medo lembrou que também ele (o Comissário Político) era quadro político de “sólida formação marxista”... O outro devolveu que, se assim era, este também era o caso do próprio comandante.
Sem Medo sorriu e disse que se tratava de um “herético” contrário à “religiosidade na política”. É certo que não podia negar que se tratasse de marxista... Mas sentia-se antes disso um “anarquista”, um “sem partido” que não conseguia aceitar os rótulos que os dirigentes colocavam nos que não comungam de suas opiniões.
Mais uma vez o Comissário Político protestou ao perceber que era incluído por Sem Medo no grupo dos que dirigem, que fazem do Partido uma capela e que “rotulam” os que consideram equivocados. Sem Medo insistiu que sim, que não havia como o Comissário não admitir que ele e os vários outros dirigentes fossem os “futuros funcionários” da realidade que surgiria após o triunfo da Revolução, “quadros superiores” que certamente perseguiriam os “heréticos” como ele próprio.
E disse mais! Esses, que precisavam dos ares de superioridade e que se julgavam merecedores da importância que todos os demais deviam reconhecer, não eram dotados do humor que ele tanto apreciava.
(...)
De longe o Muatiânvua continuava a observá-los... Quem se aproximou foi Ekuikui, que quis saber se havia discussão entre o comandante e o Comissário Político.
Muatiânvua disse que só estavam a falar amistosamente e que pelo visto não havia zanga entre os dois... Ekuikui comentou que esperava que eles se entendessem.
(...)
O Comissário perguntou por que Sem Medo teria parado de falar... Estava cuidando de não o ofender?
Sem Medo deixou escapar um sorriso e sentenciou que o amigo ainda não estava totalmente contagiado pelo dogmatismo e é por isso que ainda podia ouvi-lo sem se ofender.
O Comissário quis saber a partir de qual momento ele achava que passaria a se sentir ofendido... Sem Medo respondeu que assim que o conflito terminasse e ele ingressasse nas altas esferas do partido... O partido governante trataria de perseguir a todos os que não se alinhassem... E o amigo sentiria profunda frustração ao “constatar na prática que o socialismo não é obra dum dia ou da vontade de mil homens”.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas