sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – Sem Medo retira-se com Lutamos e Muatiânvua para uma longa patrulha; contemplando a formação da tempestade que virá e refletindo sobre as dificuldades de se manter a individualidade sem ser dissolvido pelas “nuvens maiores”; das insatisfações dos comandados

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/02/mayombe-de-pepetela-outro-relato.html antes de ler esta postagem:

Sem Medo estava amuado...
Os episódios do dia anterior provocaram um mal-estar desnecessário a todos. André não cumpriu o que havia prometido ao Comissário Político, e este passou a se culpar pela falta de alimentos.
O comandante disse rispidamente que não tinham mesmo de esperar nenhuma atitude mais coerente do chefe do escritório político em Dolisie. Na verdade, teriam de se virar para encontrar comida em vez de aguardar providências que não seriam tomadas pelo tipo folgazão.
(...)
Sem Medo pegou seu rifle e chamou Lutamos e Muatiânvua para uma patrulha.
Os três percorreram longa distância e passaram sem interrupções por várias elevações... Por volta das três da tarde se aproximaram de um riacho. Lutamos se dispôs a verificar uma área conhecida, que havia sido minada por ele tempos atrás. Muatiânvua aproveitou para fumar e enquanto pitava comentou que até os animais de caça pareciam ter feito acordo com o André para matá-los de fome.
Lutamos disse que faltava união para darem um golpe e tirar o André da direção em Dolisie.... O rapaz esperava qualquer reação de Sem Medo, mas este permaneceu calado. Muatiânvua olhou para Lutamos e entendeu que devia dar continuidade ao assunto, por isso emendou que o Comando parecia desunido e era por isso que o André não recebia as “ordens certas”.
Acontece que Sem Medo fez que não ouvia os camaradas. Também acendeu o seu cigarro e passou a contemplar a floresta sem nada dizer. Muatiânvua retirou-se para o rio na esperança de pegar algum peixe. Lutamos permaneceu a observar o comandante em sua introspecção. De fato, Sem Medo pensava a respeito da Base e a atmosfera nervosa que envolvia a todos os camaradas. Pelo visto devia esperar turbulências para breve.
Depois, analisando a formação das nuvens, entendeu que a chuva forte estava se aproximando. Disse que deviam ir ao “deserto”, que na verdade era uma montanha coberta de capim. Chamavam-na “deserto” por não possuir as gigantescas árvores da floresta fechada. Ali, o sol forte feriu as vistas dos homens. Pararam num elevado, onde puderam avaliar o entorno... Tiraram as camisas e as colocaram para secar sobre um caminho que os tugas costumavam utilizar em suas patrulhas.
(...)
Sem Medo passou a acompanhar a formação das nuvens que se dirigiam para cima do Mayombe, onde se acumulariam e despejariam muita água. Filosofou sobre o modo como cada uma delas carregava sua “individualidade” pelo céu, sobre como sofriam mutações e terminariam misturadas a uma massa muito maior e potente.
De repente sentiu-se semelhante a uma daquelas nuvens que parecia resistir ao grande volume que se formava em direção à floresta fechada. Percebeu as formas que ela assumia (uma ave, longos cabelos de mulher loira, um cavalo...) e passou a torcer para que ela conseguisse ultrapassar ilesa pela maior... Mas a conformidade atmosférica a dissolveu na volumosa nuvem.
(...)
Só então decidiu se pronunciar querendo saber dos camaradas se alguma inquietação se passava no meio do grupamento. Muatiânvua esperava exatamente pela oportunidade de falar ao chefe e disse que havia insatisfação por causa da falta de comida. Explicou que vários camaradas pensavam que as provisões não eram enviadas porque a direção em Dolisie entendia que as ações guerrilheiras estavam muito abaixo do que se podia esperar. Havia os que culpavam os civis e defendiam uma mudança dos cabeças. Entre os kikongos falava-se a seu favor... Outros eram os que o criticavam e defendiam maior poder ao Comissário Político... Alguns ainda esperavam que o Chefe de Operações passasse a comandar, ou ainda que este se aliasse ao Comissário para enfrentá-lo.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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