sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – Lutamos e Muatiânvua explicam as divisões entre os camaradas e a oposição ao comandante; as esperanças de Lutamos e sua opinião a respeito do preconceito do Chefe de Operações em relação ao povo cabinda; Muatiânvua, sua espontaneidade e boa vontade anárquica; da união do comando e particularmente entre Sem Medo e o Comissário Político

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/02/mayombe-de-pepetela-sem-medo-retira-se.html antes de ler esta postagem:

Por mais convicto que Sem Medo fosse de suas ideias, não teve como não se sensibilizar com as palavras que revelavam a fragmentação do grupamento.
Esboçou um triste sorriso e perguntou a respeito dos que não eram kikongos (que eram a seu favor) e nem eram kimbundos (favoráveis ao Comissário político). Muatiânvua explicou que esses eram poucos.
A conclusão mais lógica a que chegou foi a de que os homens estavam pensando que entre ele e o Comissário havia desentendimentos de difícil solução. Muatiânvua respondeu que desde o dia anterior só se falava sobre isso. Lutamos se intrometeu e deu sua opinião sobre a necessidade de união para que conseguissem destituir o André. Sem Medo quis saber se o camarada acreditava que a união seria possível com a participação do Chefe de Operações.
Lutamos entendeu a pergunta porque sabia que o Chefe de Operações não o tinha em bom conceito. Por ser cabinda, era visto por ele como traidor. Apesar desse preconceito em relação à sua gente, Lutamos entendia que o Chefe de Operações era um bom quadro revolucionário e que no futuro mudaria a sua opinião. De sua parte, esperava que a luta revolucionária avançasse e para isso o Comando devia se unir e derrubar a direção em Dolisie. Todos deviam entender que o povo não era traidor, mas era preciso mostrar que o movimento estava bem articulado e derrotando os imperialistas. Era preciso mostrar força, assim todo o povo daria total apoio.
O camarada insistiu que os civis de Dolisie não enviavam recursos porque entendiam que a guerra não avançava e que o Comando estava muito dividido. Sem Medo comentou que os guerrilheiros insistiam em alimentar discussões sobre as discórdias entre os líderes... Ele até admitiu que o Comissário Político e o Chefe de Operações tinham suas diferenças, mas ele mesmo jamais tivera problemas de relacionamento com os pares. Sobre a discussão do dia anterior, disse que não ocorrera nada demais. O Comissário o havia criticado e não havia problema nisso, pois até entendia que essas ocasiões faziam bem ao grupo e que elas deviam ser mais frequentes.
Para Sem Medo, os guerrilheiros equivocavam-se ao considerarem o Comissário Político um tipo lento demais e incapaz de garantir a unidade do grupamento. Precisavam entender que o Comissário tinha o seu modo de pensar e que se tratava de outro quadro de muito valor para o movimento revolucionário.
Muatiânvua concordou com o chefe, que passou a defender as situações de aparente desentendimento. As discussões eram normais e não é porque elas aconteciam que havia inimizade entre eles. Os dois camaradas ali, que eram destribalizados, deviam entender que ninguém conseguiria fomentar desavenças entre ele e o Comissário.
Muatiânvua respondeu que entendia o que o chefe dizia. Explicou que estava apenas repercutindo o que os demais camaradas diziam na Base. De sua parte, todos sabiam que não era do tipo que tomava partido nas discussões à toa. Quando defendia alguém, usava a razão e sempre desprezava as intrigas. Estava tão à vontade para se expor que poderia mesmo dizer tudo aquilo perante qualquer um, inclusive perante o André.
(...)
A respeito de Muatiânvua é bom levarmos em consideração que os demais o viam como um “anarquista das palavras”. De modo simplificado isso quer dizer que ele era espontâneo em suas manifestações nos momentos mais polêmicos de discussão... Era sincero e quando falava geralmente provocava debates ainda maiores. Não havia como não o notar em meio aos demais, sempre com os cabelos desgrenhados e os olhos brilhando de desprezo à autoridade. Não foram poucas as vezes em que seu nome apareceu como indicado a promoções ou estágios e estudos em outros países, porém sempre ocorria de sofrer o veto daqueles que se sentiam ofendidos por um de seus ataques.
Sem Medo observou que tinha certeza de que os dois que o haviam acompanhado até aquela distante paragem não eram como os que viviam a procurar desentendimentos entre os membros do Comando. O que aqueles esperavam? O litígio, o rompimento, a dissidência. Não sabiam que os vínculos que o uniam ao Comissário Político era dos mais fortes.
(...)
Não foi sem uma ponta de emoção que o comandante pronunciou essas últimas palavras. Os camaradas perceberam e respeitaram o seu quase desabafo. Logo depois o vemos sentenciando que pegariam muita chuva no caminho de volta para a Base.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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