Cecília pôs-se a contemplar o fiel amigo e pela primeira vez admirou-o por sua beleza... Os traços de Peri, “busto selvagem moldado pela natureza”, um tipo forte e inteligente, chamaram-lhe a atenção... A menina questionou-se sobre os motivos de nunca ter dedicado esse olhar diferenciado a ele... Concluiu que, antes, os seus olhos não focavam os detalhes físicos de Peri...
O momento que vivenciavam era de subtração dos laços de família. Outrora conferia ao goitacá a estima e o respeito... No deserto, ambiente do qual ele era parte, Cecília via que Peri era digno de “admiração estética”.
O texto procura enfatizar a percepção de Cecília relacionando-a ao que ocorre com a apreciação dos quadros de grandes pintores: “precisam de luz, de um fundo brilhante, e de uma moldura simples, para mostrarem a perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas”... Da mesma forma, “o selvagem precisa do deserto para revelar-se em todo o esplendor de sua beleza primitiva”...
Entre os familiares de d. Mariz, o amigo de Cecília era apenas um “índio ignorante”, um “bárbaro” que, entre os “civilizados”, tinha o seu lugar de cativo... Nem a consideração que d. Mariz e a filha nutriam por Peri conferia-lhe algo mais do que a condição e “amigo escravo”.
(...)
Em meio à mata Peri era visto por Cecília como “senhor das florestas”,
um rei...
As horas passaram e a menina viu surgir a estrela
d’alva... Isso a fez se lembrar do amanhecer de outrora, quando não havia
preocupações, ocasião de agradecer a Deus pelo bem estar que a família gozava.
A recordação a fez despejar uma lágrima, que caiu sobre a face do amigo
adormecido.
Foi com certo acanhamento que Peri disse que já se sentia restaurado
pelo sono... Explicou que o dia estava para nascer e que ele deveria estar
pronto para protegê-la... Cecília respondeu que ela também poderia velar sobre
o descanso do amigo e que ele bem poderia permitir esse seu gesto de
gratidão... O índio deu alguns exemplos em que a natureza ensina que o mais
forte defende o parceiro mais fraco (citou o caso dos casais de rolinhas, cujos
machos protegem e procuram alimentos para as delicadas fêmeas)... A comparação
simplória de Peri fez Cecília corar. Então ela quis saber como é que ele se via
naquela condição. Peri respondeu que era um escravo de sua senhora... A menina
disse que o considerava um irmão...
(...)
O dia tornou-se claro e Cecília ajoelhou-se para a prece do “Salve
Rainha”... Pediu para o amigo repetir suas palavras... E, assumindo a sua
condição de convertido, Peri pronunciou uma a uma as palavras da oração.
Depois da oração da manhã, ele procurou um lugar calmo e protegido do
sol, onde Cecília pudesse passar algum tempo... Logo que chegaram a um local
tranquilo, o goitacá anunciou que procuraria alimentos... Cecília quis ir
junto, mas Peri a fez ver que ela sofreria muito numa caminhada pela mata cheia
de espinhos... Os pés da menina calçavam um frágil e delicado borzeguim (botina)
de seda!
Para que ela não se sentisse tão só, Peri deixou-lhe uma flor (e
explicou que deixava sua alma nela; contou que entre os seus parentes falava-se
que a alma das pessoas se esconde nas flores, e é por isso que o guanumbi – o colibri
– persegue as flores e as beija)... Tranquilizou-a também ao dizer que não se
afastaria, assim, bastaria que ela o chamasse para tê-lo de volta.
O goitacá protegeu a área onde sua senhora
estava instalada com uma série de “pequenas fogueiras feitas de louro, de
canela, urataí e outras árvores aromáticas”... Dessa forma, nenhum animal
(principalmente insetos e cobras) a incomodaria.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/10/o-guarani-de-jose-de-alencar-menina.html
Leia: O guarani. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto