O ritual canibal dos aimoré parecia estar se aproximando do momento apoteótico... Quatro dos guerreiros chegaram para conduzir Peri até o local onde seria sacrificado (a nota esclarece que os costumes aimoré não eram totalmente conhecidos por permanecerem mais afastados dos colonos; como em muito se assemelhavam aos tupi, a descrição aproveitou os relatos de Simões de Vasconcelos e Lamartinière “sobre os tupinambá e outras tribos mais ferozes”)...
(...)
Peri caminhou entre eles com passos firmes. Seus inimigos não repararam
que ele verificou as pontas de sua túnica de algodão, onde ele havia feito dois
pequenos nós. O prisioneiro foi levado ao local determinado, onde se viam mais
de cem guerreiros armados e cobertos por penas ornamentais... Noutra parte se
concentravam as velhas índias que lavavam a grande pedra que serviria de
mesa... Elas estavam pintadas com listras amarelas e escuras; algumas se
dedicavam a afiar as facas de lascas de pedra e de ossos... As mais jovens se
mantinham próximas a vasos cheios de vinho, cantavam hinos de guerra de seu
povo, e ofereciam da bebida aos guerreiros que passavam por elas.
A filha do cacique manteve-se mais à parte e olhava os
preparativos com tristeza... Dessa vez ela não sentia o mesmo prazer de rituais
passados... Naquele momento tudo se revelava muito cruel para ela...
A menina tinha um papel a ser representado na cerimônia como “esposa do
prisioneiro”... Ela deveria acompanhá-lo até o fim do sacrifício “insultando-lhe
a dor e a desgraça”... Mas isso não era nada fácil para ela porque realmente
amava o condenado.
Peri ficou imobilizado no centro de um terreiro. As
pontas das cordas foram amarradas em dois troncos... Enquanto isso, os
guerreiros davam voltas ao seu redor entoando o canto da vingança.
Os sons dos animais da floresta se misturavam àquela gritaria
proporcionando um espetáculo de horror... A dança e o cântico tornavam-se mais
acelerados e os vultos aimoré rodopiavam como “espíritos satânicos envoltos na
chama eterna”. Os guerreiros se revezavam e um deles sempre se aproximava mais
de Peri para insultá-lo e desafiá-lo a provar o seu valor, coragem e força... O
goitacá mantinha-se altivo e via com orgulho que os que se imaginavam
vencedores eram os que seriam derrotados por ele. Sua convicção o mantinha
tranquilo, e ela se justificava pelo fato de tudo ocorrer conforme ele
planejara... Mas até aqui os seus reais intentos são segredo para o leitor.
De repente a dança e a cantoria pararam. Todos voltaram a atenção para
uma folhagem que escondia uma cabana selvagem... Dali saiu o cacique, que
estava ornamentado por “duas peles de tapir ligadas sobre os ombros” como se
fossem uma túnica. Na cabeça levava um cocar com penas escarlates, e seu rosto
estava pintado com uma cor esverdeada e oleosa. No pescoço do gigante e velho
cacique havia uma coleira de penas de tucano... Seus olhos brilhavam. Na mão
esquerda carregava a sua tangapema enfeitada de plumas. No punho direito trazia
amarrada uma “espécie de buzina formada de um osso enorme da canela de algum
inimigo morto em combate”.
O cacique entrou no palco onde Peri seria sacrificado tocando o
instrumento... Ao ouvirem o som estrondoso, os aimoré o saudaram com muitos
gritos... Ao vencedor cabia executar o vencido... Um dos guerreiros fincou uma
estaca numa das extremidades do terreiro, onde deveria ficar a cabeça do
prisioneiro... A jovem filha do cacique recolheu o tacape que o velho trazia,
livrou os braços de Peri das cordas e ofereceu-lhe a arma. A menina queria que
ele visse em seu olhar que tudo poderia ter sido bem diferente se ele não
recusasse o amor, a vida e a liberdade que ela lhe oferecera anteriormente.
Entregar o tacape ao prisioneiro que seria
executado era uma crueldade cômica que fazia parte dos rituais selvagens... Mesmo
que o prisioneiro quisesse atingir seus algozes com a arma não conseguiria
porque as cordas o impediriam de avançar. Peri recebeu a arma e, sem
manipulá-la, deixou-a aos pés e cruzou os braços.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/10/o-guarani-de-jose-de-alencar-os-aimore.html
Leia: O guarani. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto