Uma saraivada de flechas incendiárias caiu sobre o casarão... D. Antônio manteve-se firme. O fidalgo sorriu e disse aos seus homens que o momento havia chegado... Teriam, talvez, mais uma hora de vida... Ele havia destruído o que restava da escada, então calculava que os inimigos demorariam esse tempo para chegar à casa... Restava-lhes “morrer como cristãos e portugueses”... Pediu que abrissem a porta para que pudessem contemplar o céu.
Quando a porta foi aberta, surgiu o vulto de Peri e, no mesmo instante, ele entrou... As flechas cravavam a casa, o incêndio crescia... A tomada da fortaleza pelos aimoré era mesmo iminente. O goitacá dirigiu-se a d. Mariz e foi incisivo ao dizer que estava ali para salvar sua senhora. Para o fidalgo, aquilo só podia ser um delírio de Peri.
O índio explicou que tinha preparado tudo para que o amigo branco se retirasse com a filha até o rio e, de lá, para a tribo goitacá, onde a mãe de Peri conseguiria que guerreiros da família o conduzissem à “grande taba dos brancos”.
D. Antônio explicou que a proposta de Peri não podia ser aceita por um fidalgo português... Disse que o seu dever, naquele momento de extrema delicadeza, era permanecer junto aos seus até o fim... Não poderia fugir dos inimigos ainda que fosse para salvar o que mais amava na vida.

D. Mariz poderia até se sentir ofendido... Talvez por isso tenha perdoado Peri pelas duras palavras... Depois perguntou a ele se teria coragem de abandonar mulher e companheiros para se livrar de inimigos... Enquanto o índio refletia sobre essas indagações, o fidalgo completou dizendo que (além de tudo) o plano proposto pelo amigo só poderia ser cumprido por alguém mais jovem... Dentre os que ele conhecia, lembrava-se de d. Diogo (bem distante dali) e de Álvaro (já morto).
Ainda inconformado, Peri explicou que havia feito de tudo para que d. Mariz conduzisse a filha à sobrevivência... Como o próprio pai se recusava a empreender fuga, sentenciou que permaneceria aos pés de sua senhora até a morte. D. Antônio chamou-lhe a atenção, e esclareceu que ele não precisava compartilhar da desgraça de sua família... Ele mesmo não consentiria que isso ocorresse. Lembrou-lhe que se tratava de um indivíduo livre. Em sua opinião, Peri devia partir o mais rápido possível.
Também essas palavras não foram aceitas por Peri, e às vésperas da morte, d. Antônio testemunhou mais essa confirmação do nobre caráter do goitacá, totalmente devotado à fidelidade a ele e à Cecília. O índio reafirmou que não abandonaria a sua senhora, e quis que d. Mariz entendesse que ele tinha o “direito” de morrer junto daqueles pelos quais arriscara a própria vida...
O fidalgo não prosseguiu a discussão e colocou ponto final ao dizer que se o desejo de Peri era o de permanecer, então, podia ficar.
(...)
Durante todo o tempo em que Peri e d. Mariz
conversaram, Cecília permaneceu dormindo profundamente... Certamente o cordial
que o pai lhe dera a manteria “anestesiada” até o instante final de suas vidas.
A gritaria dos
inimigos aumentava...
D.
Mariz lamentava silenciosamente a trágico fim de sua doce filha... A um gesto
seu, os aventureiros se dirigiram para o gabinete.
Peri não arredava pé e
permanecia firme junto a Cecília...
Os
pensamentos de d. Mariz estavam agitados porque sabia que o amargo fim estava
muito próximo...
Dirigiu-se até Peri e pegou-lhe a mão e disse
que, se ele fosse cristão, lhe confiaria a salvação de Cecília com a convicção
de que o amigo a levaria ao Rio de Janeiro, para junto de sua irmã, d. Isabel
de Mariz.
Continua em http://aulasprofgilberto.blogspot.com.br/2013/10/o-guarani-de-jose-de-alencar-peri-se_20.html
Leia: O guarani. Editora Ática.
Um abraço,
Prof.Gilberto