sexta-feira, 1 de março de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – final do relato pessoal de Muatiânvua; ser da África, ser do mundo; vivência marinheira, vida à margem; todas as línguas, todos os homens, todas as mulheres; fim do capítulo II

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/03/mayombe-de-pepetela-consideracoes-do.html antes de ler esta postagem:

Estamos no ponto em que Muatiânvua toma a palavra e nos conta um pouco sobre a própria vida... Vimos que bem cedo tornou-se órfão de pai, trabalhador na Diamang, vítima da tuberculose que atacava os pulmões dos mineradores.
Para os trabalhadores e seus familiares, o brilho dos diamantes podia bem representar as lágrimas do sofrimento da labuta em ambiente hostil.
Uma das grandes ironias da existência do guerrilheiro era ter nascido na rica região de exploração sem nunca os ter visto (os diamantes).
(...)
A vida de marinheiro atraiu Muatiânvua... As gotas das águas dos mares se chocando contra os cascos das embarcações passaram a ser os “diamantes em sua vida”.
E durante muitos anos ele navegou... Esteve na Namíbia, no Gabão, em Gana, no Senegal, na Mauritânia... Para cada trecho da produção textual, há um aspecto exuberante dos mares e terras... Numa parte, o deserto; noutra, as praias, florestas e rios.
Graças ao ofício de marinheiro esteve em terras da Arábia e Índia... Por toda parte pôde contemplar as praias de areias amarelas.
Quantos portos! Em cada um deles arranjou uma mulher, uma confusão... Foi quando esteve em Camarões que ouviu o rádio noticiar os ataques às prisões (o “4 de fevereiro” de 1961, quando militantes do MPLA atacaram o presídio de Luanda e outros pontos estratégicos do país, dando início ao movimento revolucionário).
Em vez de retornar para Angola, Muatiânvua decidiu descer para Matadi (Congo)...
Lumumba havia sido assassinado e houve revolta por toda parte... A sublevação do 4 de fevereiro foi acontecimento que fez a ferida provocada pelo martírio parar de sangrar.
(...)
Muatiânvua não poderia jamais entender o tribalismo...
Desde a infância conviveu com “homens de todas as línguas vivendo nas casas comuns e miseráveis da Companhia”.
Em Benguela, onde cresceu, conheceu homens que sofriam amarguras comuns a todos, embora cada um deles tivesse origem diferente... Alguns meninos de sua primeira turma de mais chegados eram brancos, e vários outros eram filhos “de pai umbundo, tchokue, kimbundo, fiote, kuanhama”...
E sobre as mulheres com as quais se relacionou? Podemos dizer o mesmo, pois conhecera “desde as reguibat do Marrocos às zulu da África do Sul”. Jamais pudera sentenciar que uma fosse menos bela do que as outras... Sequer podia discriminar as que usavam véu sobre o rosto ou as que tinham escarificações na pele.
Como podiam exigir que ele tomasse posição tribalista? Nem mesmo podia responder a qual tribo pertencia, pois se sentia pertencente a todas elas. Sentia-se angolano e africano.
Com um nigeriano havia aprendido o haussa... Também falava o swahili... Como definir a sua língua se vivia misturando várias delas nas frases que proferia? E há que se destacar que para melhor se comunicar com os camaradas falava em português...
(...)
Muatiânvua tinha certeza de que não era bem visto por muitos dos camaradas... E tudo porque pouco se importava se devia seguir o sangue kimbundo de sua mãe ou o sangue umbundo paterno... Tipos como ele havia Sem Medo, o Teoria, o Comissário e outros mais.
Sua paciência só podia ser um legado dos mares, que têm águas que unem e estreitam. Para ele, todos os africanos possuem um “mar interior”. Este não é exatamente o “Kuanza, o Loje ou o Kunene”. O “mar interior” de cada um é de “gotas-diamante, suores e lágrimas”... O brilho das armas no Mayombe também era este “mar interior”.
Muatiânvua registra que seu nome era “nome de rei”... Sua autonomia o levava a escolher a própria rota. Havia sido de tudo na vida, “ladrão, marinheiro, contrabandista, guerrilheiro”... Na verdade, sempre estivera à margem. E isso parece bem apropriado para quem passou a vida a navegar.
Ao final de suas considerações, ele questiona o fato de quererem que ele se posicionasse em relação às tribos. De que maneira? Não sentia a menor necessidade de apoiar-se nesta ou naquela. Sentia-se forte, e sua força tinha origem na própria terra que sugava a energia dos homens, como acontecera com o seu pai...
Sua força vinha dos exercícios dos trabalhos que exercera puxando cabos, girando pesadas manivelas ou esmurrando mesas de tabernas... Tudo isso à margem das rotas dos gigantescos e luxuosos navios que atravessam os oceanos.
Fim do capítulo II
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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