Sem Medo foi à cozinha para orientar que preparassem um almoço mais reforçado e abundante... Nem precisava porque os responsáveis pela tarefa já haviam tomado a iniciativa.
Por toda parte viam-se guerrilheiros conversando a respeito do boato que manchava a reputação do Comissário Político. O comandante pensou que, pelo menos, o principal interessado não fora o último a saber... Então pensou em Ondina com certa admiração.
(...)
O Chefe de Operações aproximou-se para dizer que
certamente haveria muitos problemas. A direção em Dolisie estava em polvorosa e
esperava-se que o André fosse substituído o quanto antes. Sem medo respondeu
que gostaria mesmo que isso ocorresse. O outro avisou que tanto o Comissário
quanto o Comandante da Base seriam convocados a Dolisie.
Sem Medo respondeu que o Comissário Político iria se
quisesse. Ele mesmo tinha dúvidas se estava disposto a ir... Acrescentou que
toda situação era problema da organização, que devia encontrar o dirigente infrator
e desaparecido.
O
Chefe de Operações explicou que o tipo devia estar escondido e apavorado com a
reação dos militantes. Obviamente os desdobramentos seriam os piores e
envolveriam a questão do tribalismo. As saídas da cidade estavam vigiadas e não
o pegaram em nenhum comboio. Isso quer dizer que, ou ainda estava em Dolisie,
ou escapara camuflado num carro para Brazza (Brazzaville, a capital da República
do Congo).
O problema era sério mesmo e os que se agitavam com a
temática do tribalismo ficariam ainda mais ouriçados ao constatarem que um
kikongo (André) se deitara com a noiva de um kimbundo (o Comissário). Sem Medo
pensou a este respeito e anteviu que o André se enterrara de vez... Desde que
se envolvesse apenas com as congolesas ninguém implicaria.
(...)
Sem
Medo não se sensibilizava com a situação do André. Em vez disso, angustiava-se
pelo fato de sua decadência se dar às custas do pobre Comissário. Mas tinha de
haver uma mulher na trama! Caim deve ter matado Abel por causa de uma mulher...
Talvez a Bíblia escondesse essa verdade.
(...)
Sem
Medo pensava sobre a situação enquanto se dirigia para a sala do Comando, onde
esperava conversar com o Comissário...
Logo que chegou, encontrou-o preparando sua mochila.
Via-se que estava transtornado e que o seu olhar encerrava um profundo vazio. Estava
claro que planejava sair.
Logo de cara, o comandante quis saber se o camarada iria
para Dolisie... Não houve resposta... Sem Medo apoiou uma de suas mãos no ombro
do camarada e perguntou se ele não gostaria de conversar. Este nada disse,
ajeitou a mochila nas costas e tomou a arma a arma e o cantil para iniciar a
caminhada.
Não havia como estabelecer diálogo, então Sem Medo pegou seu
rifle e o seguiu. Logo percebeu que seria difícil acompanhá-lo mais de perto
porque os passos do Comissário eram largos e apressados.
(...)
Passaram
por trechos cortados por regatos e de trilhas mais fechadas... O Comissário não
se importava com os vários ruídos que provocava. Parecia que não se dava conta
de que Sem Medo seguia no seu encalço...
Mas de repente ele parou e se virou querendo saber por que
o estava seguindo. Sem medo respondeu que o acompanharia. Embora não lhe
tivesse dito para onde ia, sabia que o destino era Dolisie. Numa tentativa de
dissuadi-lo, alertou-o sobre a sua saída da Base de forma ilegal.
Isso
significava que o comandante poderia prendê-lo e levá-lo a julgamento... O
Comissário explicou que não era fugitivo e tampouco se tratava de um desertor.
O comandante respondeu que, enquanto ele não se esclarecesse, era como se
estivesse abandonando o movimento. Emendou que, nesse caso, tinha o dever de
segui-lo.
O Comissário sentenciou que já não se importava com o
regulamento e que se quisessem podiam considerá-lo desertor.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/03/mayombe-de-pepetela-joao-avanca-em-meio.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto