Sem Medo observou com atenção o caminho que tinham percorrido até ali e imaginou que os tugas já deviam ter notícia daquele trecho... Provavelmente algum pistoleiro já se deparara com a picada em alguma parte no Mayombe... Também havia os espiões no Congo que, uma vez informados a respeito, fariam questão de passar as dicas para emboscadas e pistas que certamente os levariam à Base.
Por isso tinham de tomar mais cuidado... Mas o Comissário Político não estava em condições de fazer aquele tipo de reflexão. Sem Medo decidiu argumentar mais e sugeriu que ele sequer sabia com toda certeza o que havia se passado entre André e Ondina. O outro respondeu que a carta era minuciosa nos detalhes.
O Comissário foi dizendo que ela indicava que havia sido “por acaso” que se envolvera com o André. No mesmo instante, ele fez uma correção afirmando que aquelas coisas nunca se davam “por acaso”. A noiva garantia que não nutria sentimentos pelo André... E isso só piorava as coisas... Então, como entender o que ocorreu?
(...)
Sem medo pensou que, de certo modo, conseguia entender
o que se passara. Mas ao mesmo tempo não podia garantir com segurança qualquer
juízo naquele momento.
O
Comissário prosseguiu em seu desabafo dizendo que ela mesma relatava que
gostava dele. A noiva destacava “certos problemas”... Mas nada seria como
antes, pois os fatos que se precipitaram a levaram a decidir mudar-se. Pediria
transferência, todavia não se sentia bem para partir se antes não lhe pedisse
perdão.
O conteúdo da carta era basicamente este. O Comissário
simplesmente não podia entender a tragédia que se abatera sobre o noivado...
Então chorou.
Sem
medo deixou-o chorar como se fosse uma criança desamparada. Tanto chorou que
seu corpo inteiro pareceu entrar em convulsão. No momento, o comandante
lembrou-se do tipo que ele executara (por traição) tempos atrás (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2018/07/mayombe-de-pepetela-sem-medo-faz-relato.html).
Tanto
chorou que a raiva que alimentava se esvaiu. O Comissário se acalmou, tomou
posse da arma e passou a caminhar em direção à Base. Sem Medo o seguiu.
(...)
Ao chegarem à primeira correnteza, o comandante decidiu
mergulhar a cabeça nas águas. Fez isso algumas vezes e quase sem fôlego
sentou-se numa pedra do caminho.
O Comissário manteve-se calado até afirmar que estava
disposto a tomar o trajeto para Dolisie novamente. Sem Medo esbravejou dizendo
que era melhor esperarem o dia seguinte.
O outro insistiu que tinha de ver a noiva o quanto
antes... Isso o “descansaria”. Queria apenas saber o que realmente havia se
passado.
Sem
medo perguntou sobre o André... O que o camarada esperava fazer? O Comissário
que tinha o rosto molhado de lágrimas, olhou para o amigo e respondeu que não
faria nada... O movimento é que devia se encarregar de seu dirigente.
Sem Medo mostrou-se surpreso e disse que pensava que
haveria vingança... O Comissário respondeu que não havia o que vingar porque o
tipo não violara Ondina... Mas então, o que quis dizer quando afirmou que os
responsáveis pelo movimento abusavam do poder?
Ele
respondeu que a falta do André era punível pela organização. De sua parte,
interessava-se apenas pela Ondina. Sem Medo observou que, neste caso, o
camarada parecia mostrar confiança no movimento... Ele concordou e até emendou
que seria um ninguém se não fosse o movimento... Salientou que graças à
guerrilha podia encontrar tipos como o próprio Sem Medo, então, como não podia
confiar no movimento?
Sem Medo apenas disse que era preciso tomar cuidado com
afirmações como aquela porque sempre podia ocorrer o tão nocivo “culto da
personalidade”.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto