Sem Medo explicou ao dirigente enviado por Brazzaville que o velho Kandimba havia dito que não tinham nada para comer. O dirigente chamou o velho e o advertiu. Kandimba deu a desculpa de que havia sido orientado pelo próprio dirigente a guardar o almoço... Disse isso e salientou que não recebeu ordem para servi-lo.
O dirigente esbravejou destacando que era um absurdo receber alguém da Base (o comandante), que fez longa viagem, e sequer lhe ofereciam algo para comer.
No mesmo instante, o homem convidou o Sem Medo para almoçar. Conforme se ajeitavam num quarto vizinho, o dirigente dizia que não conseguia entender como aquele tipo de postura era possível em Dolisie.
Sem Medo explicou de modo simples que ele era kikongo enquanto o velho Kandimba era kimbundo. Então as coisas se resumiam a isso. O velho estava contra o André (que também era kikongo), mas a “lógica tribalista” condenava todos os kikongos.
O dirigente lembrou que, além disso, misturavam a “burocracia”, pois para Kandimba foi conveniente destacar que ele havia pedido para “guardar a comida”. Sem Medo observou que a ideia sobre a “burocracia” foi apenas desculpa para a postura do Kandimba. Em momento algum o velho deu a entender que a “burocracia” fosse o problema. Simplesmente desabafou a sua crítica tribalista e quando teve chance conseguiu tirar-lhe um cigarro.
(...)
O dirigente adiantou que seria necessário substituir o
André. Sem Medo deu a sua opinião dizendo que a direção não teria dificuldade,
apesar dos aspectos que deviam ser considerados na escolha... Quis saber se
Ondina já tinha sido ouvida. O dirigente explicou que sim e que ela havia pedido
transferência.
Pelo
visto achavam que era o melhor a se fazer. Sem Medo observou que o Comissário
Político alimentava esperanças de reconciliação. Sendo assim, talvez fosse
melhor colocar panos quentes na confusão.
O
dirigente respondeu que normalmente o movimento avaliava o caso e estabelecia
punições... Na maioria das vezes sentenciavam-se suspensões. Sem Medo
relacionou aquilo à “moral cristã”... O outro o corrigiu destacando que se
tratava da “moral revolucionária”.
Sem Medo não concordou e disse que só seria “revolucionária”
se todos os casos parecidos fossem tratados da mesma forma. Sabia-se de muitos
em que nada foi feito. O fato é que, quando o caso provocava escândalo, a
direção fazia questão de mostrar que faria algo. Explicou que a situação tinha
mais a ver com “moral cristã” porque a preocupação principal era com as
aparências. Em relação à Ondina, podia-se dizer que havia crime contra o
movimento? No caso de André, sim, mas o deslize dela era humano, e só isso.
(...)
O dirigente cravou que o comandante Sem Medo continuava o
mesmo de tempos atrás... Kandimba trouxe uma garrafa com maluvo (bebida
fermentada) e os serviu... O tipo de Brazzaville quis saber quanto tempo já se
passara desde a última vez que o comandante bebera... Este respondeu que já
havia se passado quatro meses.
Na sequência o dirigente deu a entender que havia
conhecido Sem Medo na Europa. Em tempos passados sabia que ele apreciava as
bebedeiras... Lembrou de certa reunião com estudantes em que ele apareceu
bêbado. Quem o visse não podia imaginar que se engajaria com firmeza na luta
armada.
Sem
Medo disse que embora bebesse muito, jamais dissera asneiras durante as
reuniões. E acrescentou que não foram poucas as vezes em que se sentiu
contrariado, mas em vez de arrumar confusão terminava cochilando. Ele sabia bem
que o trabalho clandestino não combina com bebedeiras.
(...)
O almoço (era fúnji de peixe) chegou ao fim... O dirigente
quis saber como estava o Comissário Político. Sem Medo respondeu que ele tinha
expressão abatida. De sua parte, receou que em algum momento ele fizesse alguma
besteira. Apesar disso ainda o via lúcido... Certamente os episódios fincariam
marcas em sua existência... Ele haveria de as superar.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/03/mayombe-de-pepetela-com-saida-do-andre.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto