Na manhã seguinte, foi confirmado que Sem Medo ficaria provisoriamente responsável por Dolisie. Ele acompanhou o dirigente e o comboio que conduzia André para Brazzaville. Na estação ficaram sabendo da fuga do Ingratidão do Tuga. E como se tratava de um guerrilheiro que atuara na Base, o dirigente deixou claro que esperava que o comandante resolvesse o quanto antes a situação. Outra orientação deixada por ele era sobre a Ondina, que deveria se transferir para o escritório político enquanto não se chegasse a uma decisão sobre o caso.
(...)
O
Comissário Político tratou de ajudar Ondina a transferir suas coisas para o
bureau...
Após despedir-se do dirigente, Sem Medo assumiu o jipe. Ao
seu lado sentou-se Hungo, que era um quadro atuante em Dolisie. Sua vontade era
a de ir para o bar tomar uma cerveja, mas tomou a direção da cadeia...
Perguntou ao camarada como é que o Ingratidão havia escapado.
Hungo não tinha ideia... Disse que quando o foram ver
pela manhã, já não estava em sua cela. O tipo também não sabia informar a
respeito de quem fazia a guarda. Com certa dificuldade, Sem Medo acendeu um
cigarro e pensou em passar pela escola para trocar umas ideias com o
Comissário. Este sem dúvida seria um excelente conselheiro, mas estava claro
que sua ocupação no momento era outra, e bem pessoal.
(...)
Ao
chegar à cadeia, o comandante foi logo mostrando a credencial que fazia dele o
responsável pelo posto que era ocupado pelo André.
A cadeia era basicamente um depósito. O chefe local
quis saber em que poderia ajuda-lo e Sem Medo foi direto ao ponto... Quis saber
quem era que fazia a guarda no momento em que o Ingratidão fugiu. O chefe
respondeu que durante a noite dois guerrilheiros serviram no local, um deles
era o Mata-Tudo e o outro era o Katanga. Já o portão havia ficado sob a
responsabilidade de Tranquilo e de Ângelo, um tipo que havia desertado das tropas
tugas há pouco tempo.
Sem
Medo não deixou de observar a imprudência ao confiarem em alguém que acabara de
passar para o lado do movimento... O caso bem podia ser de uma sabotagem. O
chefe do depósito concordou, mas acrescentou que a falta de pessoal os levava às
medidas temerárias como aquela. Sem Medo pensou sem se manifestar que, à exceção
do desertor, todos os citados era kimbundos. Mandou chamar os guardas.
Interrogou
os homens e as respostas foram as mesmas... Disseram que não ouviram nada de
anormal, que não adormeceram e nem perceberam nenhuma movimentação diferente.
Para Sem Medo, um dos dois estava implicado, pois o Ingratidão não teria como
escapar se não lhe abrissem a porta. Já os que cuidaram do portão podiam não
ter nada a ver com a fuga porque o prisioneiro poderia ter fugido pelo mato
junto ao depósito.
O comandante Sem Medo entendeu que talvez os dois guardas nem
tivessem agido juntos, todavia ordenou que se apresentassem alinhados e
sentenciou que o Mata-Tudo e o Katanga iriam para a cela imediatamente. Deixou
claro que pelo menos um dos dois havia ajudado na fuga do Ingratidão e que
cumpririam a pena dele enquanto os fatos não fossem esclarecidos.
Na sequência ordenou que o chefe escolhesse outros dois guerrilheiros
para conduzir os prisioneiros. Deixou claro que se nova fuga ocorresse a
punição recairia sobre o próprio chefe do depósito.
Houve murmúrio e os dois escolhidos cumpriram a ordem de
má vontade. No mesmo instante, Sem Medo advertiu a todos que o caso seria solucionado
de uma forma ou de outra. Ele mesmo estava ali provisoriamente e quando o
responsável enviado por Brazzaville chegasse tudo se resolveria a partir de
suas ordens. Deixou claro ainda que tinha de proceder daquela maneira porque
pelo menos um dos dois se comprometera com o Ingratidão do Tuga.
Ainda
mais murmúrios foram ouvidos, e Sem Medo disse que esperava por isso. Disse que
imaginava que atribuíssem ao André mais essa confusão. Mas fez questão de concluir
dizendo que todos sabiam que o antigo responsável não tinha nada a ver com a
fuga e a indisciplina dos guardas. A questão era que o prisioneiro era um kimbundo
como a maioria dos que ali estavam. Alguém aproveitou a ocorrência do André
para facilitar a fuga do prisioneiro. Talvez pensassem que ninguém tomaria
medidas contra um kimbundo por causa do mal feito do responsável por Dolisie,
que era Kikongo.
Todos ali tinham de saber, e Sem Medo deixou isso claro,
que com ele era diferente, pois não se importava com as questões de tribalismos.
Era um tipo justo e ninguém podia dizer que ele mesmo não criticava o André,
kikongo como ele e um parente distante. Ninguém poderia afirmar que ele fizesse
tribalismo ou ainda que ele se sujeitasse às chantagens tribalistas.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto