O Comissário Político começou a falar ao Sem Medo a respeito de sua conversa com o guerrilheiro Mundo Novo... Como sabemos, o jovem reprovava os últimos episódios de indisciplina dos camaradas e a falta de punição por parte do Comissário.
Na opinião de Sem Medo, não havia que se esperar outra coisa de Mundo Novo. O Comissário foi desfiando suas lamentações sobre as acusações que lhe foram apontadas. Parece mesmo que ficou abalado com as ideias sobre o agravamento da situação que podia resultar em tiros, que ele seria o culpado e que não devia dar ouvidos às opiniões do Comandante.
O Comissário explicou que não deu créditos ao Mundo Novo, lhe deu as costas e retirou-se sem mais satisfações. Porém sabia que de fato a situação na Base era das mais graves e que tinham de fazer algo para impedir que o pior viesse a ocorrer.
(...)
Sem Medo quis saber o que devia ser feito no caso dos
guerrilheiros que estavam se agredindo... O próprio Comissário Político
entendia que a punição só servia para ainda mais agravar os problemas. Também a
ideia de castigá-los colocando-os de “guarda suplementar” estava fora de
cogitação, pois na condição de fraqueza física em que se encontravam não
suportariam e certamente dormiriam durante a vigilância.
Os
dois entendiam que não poderiam aplicar o rigor disciplinar porque a situação
era excepcional. O drama do Comissário era o de saber que Mundo Novo também
tinha razão. Então da mesma forma que entendia o ponto de vista de Sem Medo,
não se sentia totalmente seguro com a flexibilização que vinha colocando em
prática... Chegou mesmo a perguntar se alguém podia estar seguro com tudo o que
vinha ocorrendo.
Sem Medo brincou e ao mesmo tempo usou de seriedade ao
dizer que Mundo Novo devia estar se sentindo seguro porque era dos que se
orientavam por seus manuais políticos. Para o rapaz, bastava consultar o
“catecismo” infalível e norteador das ações do militante.
(...)
No
final das contas, de acordo com a opinião de Sem Medo, não havia nada a ser
feito. O jeito era esperar... O Comissário lamentou o fato de a Base ter
localização tão distante de povoados. Do contrário podiam ser abastecidos pela
gente do povo. Referiu-se mesmo à aldeia que se localizava na área da missão da
região madeireira e que podiam pensar em transferir a Base para mais junto dela.
Sem
Medo disse que deviam agir de acordo com a realidade do momento... Quer dizer,
tinham de esperar pelo resultado da visita do Chefe de Operações a Dolisie. O
Comissário perguntou ao comandante se ele achava que faltava mesmo dinheiro no
escritório político. A resposta foi incisiva, pois Sem Medo não só achava que
havia dinheiro como pensava que o André sabotava o movimento. Nem tinha
condições de discutir os motivos, mas acreditava mesmo que os burocratas
sabotavam a guerra. Uma explicação seria o fato de o movimento resultar na
formação de novos quadros políticos que provavelmente se tornariam concorrentes
dos mais antigos... Se perguntassem, talvez ouvissem de tipos como o André que
havia certas regras que deviam ser cumpridas... E essa devia ser a desculpa
mais utilizada por eles.
Para Sem Medo, não era possível que o André tomasse todo o
dinheiro que passava pelas suas mãos só para gastar com as mulheres, apesar de
ter muitas amantes. Um dirigente corrupto e “inteligente” certamente recorria à
verba destinada a setores “menos importantes”. Dessa maneira conseguiria manter
os vários namoros e não comprometeria o desenvolvimento da guerra. Mas a
desonestidade do André juntava a sua falta de vergonha no desvio do dinheiro
para suas orgias com a improbidade que resultava na derrocada do movimento.
(...)
Então seria interessante pensar em um levante na Base que
se dirigisse a Dolisie para exigir a sua saída.
Sem Medo deixou escapar este desabafo e no mesmo momento o
Comissário Político perguntou por que a ideia não era posta em prática... Depois
acrescentou que talvez os kikongos se recusassem a participar, mas o próprio
comandante poderia convencê-los.
Continua em https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/03/mayombe-de-pepetela-revelacoes-sobre.html
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto