Após o almoço, Sem Medo brincou que só faltavam “bom café e aguardente”. O dirigente solicitou ao Kandimba que providenciasse o café, mas fez questão de destacar que por causa da crise não tinham outra bebida. Na sequência lamentou que a falta de apoio do povo os levava a depender quase exclusivamente da ajuda de outros países.
(...)
Passaram
a falar sobre temas diretamente relacionados à doutrina política. O dirigente
fez nova referência ao Mundo Novo e à crítica do comandante a respeito do
dogmatismo. Então perguntou-lhe sobre o que ele entendia por “ser dogmático”.
Sem Medo respondeu que o dirigente sabia tanto quanto ele
próprio, mas este o interrompeu dizendo que havia relativismo no conceito.
Nisso os dois estavam de acordo, então Sem Medo sintetizou que o dogmatismo é “rígido
na sua concepção de disciplina” sem levar em conta as condições da realidade na
qual se atua. O problema se dá quando a todo custo o dogmático insiste em
aplicar o que conhece apenas através dos estudos.
Em nenhum momento, o militante dogmático aceita
colocar em discussão suas máximas, que se tornam “verdades absolutas”. A verificação
da realidade não conta para ele... Sem Medo explicou que isso era como o que
ocorre com os religiosos que não se dispõem a duvidar a respeito dos
ensinamentos de seus catecismos.
Restava
saber se Sem Medo também não se guiava por “ideias absolutas”. O dirigente
perguntou e ele respondeu que essa era a tendência da maioria, principalmente
se se tivesse um sólido embasamento religioso desde a infância e adolescência.
Assim, a questão principal para o adulto seria a de evitar que suas
constatações particulares passassem a dominar o raciocínio como “verdades
universais”.
Ele quis mostrar que a “formação religiosa” que as
pessoas trazem desde a mais tenra idade as levam a se habituarem a não
problematizar suas convicções... É claro que isso as leva à acomodação e à “preguiça
intelectual”.
O
dirigente ouviu o comandante com atenção e por fim disse que suas palavras eram
as de um intelectual. Ressaltou que isso era “no bom sentido”. Considerou ainda
que Sem Medo era um tipo que exigia muito de si mesmo. Por mais contraditório
que parecesse, sua exigência era quase religiosa. Segundo ele, o já duradouro
tempo de serviço na mesma região contribuía para essa sua condição. Então
deixou escapar que a direção estava planejando transferi-lo para outro campo...
Sem
Medo admitiu que a ideia o atraía. Disse que talvez pudesse contribuir com a
abertura de uma nova frente de combate... Quem sabe na Serra Cheia ou o
Huambo...
Para o dirigente, aquelas palavras caíam como que revelação...
Ficou curioso e perguntou se aquilo tinha a ver com alguma mulher que o comandante
havia conhecido por aquelas paragens. Em tom de gracejo, Sem Medo respondeu que
“Freud não explica tudo”. E ele mesmo chamou a atenção para o contexto que os
reunia em Dolisie (o adultério de Ondina com o dirigente André)... Talvez Freud
os ajudasse na resolução dos problemas que surgiram... Talvez não, e a coincidência
relacionava-se apenas ao “vício dos intelectuais” de vincularem temas clássicos
mais pertinentes às circunstâncias que envolvem suas conversas.
(...)
O dirigente retomou o assunto da vaga deixada pelo André
em Dolisie... Ele adiantou que a “sondagem” que lhe fizera era de sua
iniciativa... Embora soubesse que Sem Medo tivesse suas diferenças em relação
aos procedimentos da direção, era bom que soubesse que o mais interessado era
consultado e sua opinião era levada em consideração no momento de se definir as
mudanças. Seu nome vinha sendo cogitado para futuras ações mais ao leste.
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto