O Comissário Político surpreendeu-se ao ouvir do próprio Sem Medo que talvez fosse o caso de a Base se revoltar e marchar contra Dolisie para destituir o André... Destacou que os guerrilheiros kikongos poderiam se recusar, mas também era possível que fossem convencidos pelo próprio comandante.
(...)
O
Comissário duvidava também dessa última possibilidade porque sabia que o André
vivia dando dinheiro aos guerrilheiros... Evidentemente essa era a maneira que
ele encontrava de silenciá-los. Sem Medo ressaltou que alguns, como
Pangu-A-Kitina, viviam reclamando da situação. Era certo que tinham de levar em
conta que os kikongos eram minoria e não fariam oposição ao motim assim que
percebessem que o próprio comandante encabeçava a revolta.
Sobre a possibilidade de perder o prestígio entre os
kikongos, Sem Medo deixou claro que não dava a mínima importância... Também
admitiu que não apresentava a proposta porque a considerava grave e que talvez
devessem experimentar outra solução. Neste pontoo Comissário estranhou, pois de
algum modo o comandante se mostrava mais contido e “menos anarquista”.
Sem Medo quis saber se o camarada Comissário se
encarregaria de liderar a insurgência. Este respondeu que já havia pensado, mas
destacou que gostaria de perceber a movimentação nascendo no interior do grupo
até que a maioria exigisse a ação. Disse também que não descartava a
possibilidade porque o que estava em jogo era o sucesso do movimento... Desde a
última missão todos haviam percebido que estavam no caminho certo. Se o André
estava sabotando a guerra, os militantes tinham todo o direito de excluí-lo da
direção.
O
comandante disse que o camarada estava sendo demagogo porque ele bem sabia que
todos topariam a empreitada se vissem que os dois estavam unidos na causa. Isso
significa que ele sabia que “influenciava as massas” (no caso, os guerrilheiros
da Base) e não precisava dizer que se submeteria à opinião da maioria.
(...)
A conversa foi interrompida pelo Lutamos, que passou rapidamente
pelo alojamento e pediu autorização para caçar. Insistiu que teria sorte, pois
tinha visto um pássaro azul sobrevoando o rio. Esse era um sinal de que teria
sorte.
(...)
Apesar
do adiantado da hora, Sem Medo o autorizou a sair e brincou que do contrário
ainda o acusariam de ser o responsável pela fome só porque não permitia que o caçador
agraciado por um sinal da “Providência” fosse caçar. Isso à parte, é claro que
Lutamos jamais deixaria de acreditar naquele tipo de presságio
independentemente do sucesso de sua caçada.
Depois
que Lutamos saiu, os dois voltaram a falar a respeito da hipótese de levante
contra o André. O Comissário Político destacou que já havia pensado na
movimentação rebelde tempos atrás, mas não cogitava comunicá-la ao chefe por
achar que este assumiria a frente e faria o discurso de ataque que inflamaria
os camaradas.
Sem Medo destacou que, como se podia notar, não era bem
assim que as coisas se davam. O Comissário apenas pensou que o companheiro era
de difícil decifração. Na sequência pediu um cigarro... O comandante estranhou
a novidade e deu-lhe um dos poucos que ainda lhe restavam no maço... Meio sem
jeito, o Comissário desistiu de fumar, pois notou que o cigarro faria falta ao
Sem Medo. E este não insistiu porque admitiu que suportava melhor a fome do que
a vontade de fumar, e destacou que quanto menos se alimentava mais lhe
acontecia de querer do tabaco. Disse isso e emendou que pelo visto teriam mesmo
de fazer a ação contra o André.
Seria só por causa dos cigarros? Ele brincou que pelo
menos teria um “motivo sério” que encobriria todos os escrúpulos.
(...)
Os dois se puseram a sorrir e Sem Medo notou que o riso do
jovem Comissário parecia sair da pele... Diferentemente do seu riso, que era
entranhado... Então pensou que conforme o tempo passava mais isso acontecia...
Como seria no futuro? E após a própria morte?
Talvez de dentro da cova explodisse um riso de abalar a
superfície.
Leia: Mayombe. Editora Leya.Um abraço,
Prof.Gilberto