sábado, 9 de março de 2019

“Mayombe”, de Pepetela – outras “lições” de Sem Medo a respeito da vida a dois; “experiência própria” e a degradante condição de homens e mulheres que aceitam a submissão completa

Talvez seja interessante retomar https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2019/03/mayombe-de-pepetela-as-licoes-que-sem.html antes de ler esta postagem:

A conversa prosseguiu tendo como tema o relacionamento com as mulheres. Como sabemos, o Comissário estava muito decepcionado com a traição de Ondina... Sem Medo dispôs-se a falar-lhe a respeito de sua experiência... Contou-lhe o segredo que fazia sua consciência pesar desde que soube do assassinato de Leli... De tão impressionado, o Comissário ainda quis saber mais.
Foi por isso que perguntou a respeito dos primeiros tempos depois da primeira separação... Sem Medo respondeu que não foram nada fáceis, pois sentiu-se apático e angustiado. Não era fácil pensar que a mulher amada se aconchegava nos braços de outro. Apesar de se sentir enfraquecido, procurava manter-se firme sempre que a via. Firme e enigmático como uma esfinge.
Até chegou a pensar que seu nome de guerra devia ser Esfinge!


(...)

As palavras de Sem Medo podem ser comparadas às dos que pretendem aconselhar casais... O fato é que seguiu dando suas “dicas”. Como veremos, a maioria delas era de conteúdo machista.
Disse que, assim como acontece na vida cotidiana, o “imobilismo” exaure o amor... No relacionamento deve-se evitar revelar-se por completo e de uma só vez para a pessoa amada porque o que nutre a paixão é o encantamento do dia-a-dia. Aí se incluem as pequenas descobertas, os “pecadilhos, taras, vícios, grandezas, pontos sensíveis”...
Suas palavras permitem que concluamos que, a partir de seu ponto de vista, assim como não é interessante conhecer tudo sobre o outro num único momento, não há que se desejar que “tudo se revele”. Quer dizer, a relação deve ocorrer “ao conta-gotas”; as revelações devem se dar ao longo de toda a vida!
Sem Medo até deu exemplos de militantes que tinham o hábito de se abrirem completamente às mulheres que conheciam. Passavam a noite inteira a falarem de si mesmos e sentenciavam que dessa forma a parceira não teria do que se queixar... Mas o que normalmente ocorria era serem abandonados após um mês de relacionamento. E onde estaria o erro dessa estratégia? Os tipos seguiam o que aprendiam no partido na melhor das intenções, buscavam os “benefícios da autocrítica”, mas isso não funcionava na prática! Segundo o comandante, é claro que também depende das mulheres... Há as que querem obter o máximo de informações do parceiro para, dessa forma, se moldarem a ele.
(...)
Sem Medo não deixou de expor sua crítica ácida. Disse que as mulheres que desejam se moldar ao homem não passam de escravas. Em vez dos riscos próprios do amor, buscam a “vida tranquila”. Emendou que essas nem podiam ser chamadas de mulheres, pois levam uma vida que mais se assemelha à das coelhas. Então, para ele, as que devem ser levadas em consideração são as que se impõem como “adversários sérios” e que no relacionamento proporcionam “os maiores prazeres e os maiores desgostos” ao homem.
Seguiu dizendo que há homens que aceitam as desgraças sem reagir e devem ser classificados como medíocres... As mulheres submissas são como esses... Disse isso e prosseguiu falando duramente sobre como classificar mulheres e homens a partir desse ponto de vista.
O Comissário Político ouviu com atenção até que resolveu dizer que todas aquelas considerações, a respeito das relações entre homens e mulheres e especificamente sobre a condição dessas últimas, se deviam ao modelo vigente de sociedade.
Sem Medo emendou que na época em que esteve na Europa conheceu uma mulher que estava sendo abandonada pelo marido... O tipo a explorara tanto e de tantas maneiras que se cansou do relacionamento.
Ele a conhecera pouco antes da separação e podia dizer que ela não era nem um pouco desprezível, e que por isso mesmo se aproveitara da situação. Disse mesmo que até certo limite ela aceitou se sujeitar aos seus caprichos. Por mais incrível que possa parecer, a mulher alimentava o desejo de que o marido reatasse o casamento... Dizia que não pretendia traí-lo mesmo em situação de separação. Só depois de muita conversa o “namoro de ocasião” avançou. Sem medo garantiu que isso ocorreu também porque ela estava bem carente.
(...)
Sem Medo insistiu em destacar a existência de muitos tipos parecidos com a europeia que havia citado. Lamentavelmente eles se habituam à mediocridade. Ele contou que foi muito difícil mostrar a ela que o marido cafajeste a fizera de capacho enquanto se divertia nos braços de outras mulheres.
Apesar de tê-la convencido, após a noitada, a mulher chorou muito ao dizer que era “indigna” de ser recebida novamente pelo marido. Admitiu que havia descido ao “mais baixo grau” da condição a que uma mulher podia chegar.
Sem Medo encerrou essa narrativa dizendo que não houve como manter o relacionamento com aquela figura. De acordo com suas palavras, era degradante demais...
Leia: Mayombe. Editora Leya.
Um abraço,
Prof.Gilberto

Páginas