terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – chefes africanos locais chamados de reis; primeiras referências documentais, o “Cancioneiro de Resende”; nova referência à expedição de 1486 comandada por João Afonso de Aveiro; do Regimento de 1512 e da criação de assinatura para o rei cristão do Congo; de cargos burocráticos, serviços administrativos e criação de uma nobreza congolesa


A verdade é que, a princípio, quando os portugueses faziam referências a “rei” de determinado povo que contatavam em suas viagens de expansão pela costa africana durante a segunda metade do século XV não atribuíam ao termo (rei) as mesmas definições que relacionavam aos monarcas europeus. Evidentemente os nativos vivenciavam uma realidade histórica própria que nada tinha a ver com a dos brancos.
Para os portugueses, tal denominação se devia ao fato de entenderem que os chefes locais estavam “investidos de poder”, já que várias tribos lhes deviam obediência e, sendo assim, possuíam autoridade. Não foi por acaso que, genericamente, viam um rei em cada chefe africano. Por outro lado, essa consideração bem podia ser explicada pela necessidade que tinham de identificar “o rei local”, e faziam isso quase do mesmo modo quando expressamos que este ou aquele é “rei das plantações”, “rei das matas”, “rei dos metais” porque prevalece sobre os demais em situações determinadas.
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Tinhorão esclarece que “a designação de rei para os chefes africanos” foi apontada em 1471 pela primeira vez numa trova do coudel-mor (capitão administrador da cavalaria) Fernão da Silveira. Com o título “Coudel-mor por breve de uma retorta que mandou fazer a senhora princesa quando a esposou” a trova foi incluída no “Cancioneiro de Resende”.
O “breve” que aparece no título é um texto que explica determinada cena teatral. O “breve” da trova de Fernão da Silveira esclarece “a dança de uma ‘torta retorta’ com bailarinos vestidos de mouros”... De acordo com o enredo, em determinado momento, um chefe africano se apresenta com um “A mim rei de negro estar Serra Leoa” a fim de mostrar a todos “como seu povo dança”. Para os portugueses, portanto, não podia haver maiores dificuldades em se admitir que o “ser rei dos negros” indicava que ele exercia liderança ou chefia em suas terras.
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Em “O rei do Congo” há ainda o registro sobre o navegante João Afonso de Aveiro que, por ocasião de seu retorno do “reino de Benin”, trouxe para junto de D. João II...

                   “um embaixador do ‘rei’ local, que lhe comunicara a existência, a 250 léguas da sua região para o interior, de outro rei chamado Ogané, e tão poderoso que todos os chefes vizinhos lhe deviam homenagem”.

Ressalte-se ainda que a ideia quase fixa de encontrar um rei em todo chefe africano se relacionava à esperança de chegarem ao mítico Preste João. As notícias sobre o dito Ogané (ver https://aulasprofgilberto.blogspot.com/2020/06/rei-do-congo-mentira-que-virou-folclore_3.html) agitaram o governo de Portugal, que passou a consultar cosmógrafos que pudessem obter informações relativas à sua identidade.
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O Regimento de 1512, que foi idealizado para o reino do Congo, rompeu com a antiga tradição de associar os chefes africanos a “reis” que podiam ser, de alguma forma, elos entre os lusitanos e o “rei cristão” Preste João, de quem se esperava duradoura aliança na luta contra os “infiéis”...
O Regimento “transformava” o “ntotila” (chefe político e religioso do Congo), já convertido ao cristianismo e batizado Afonso I, em um rei como os que os portugueses conheciam pela Europa.
Logo de início percebeu-se o problema da falta de escrita entre os africanos da região subequatorial. Então, não por acaso o pessoal encarregado da diplomacia durante o reinado de D. Manuel tratou de criar uma assinatura que deveria ser usada pelo rei do Congo em suas cartas ao rei português. O livro reproduz a assinatura e a orientação regimental:

                   “Este é o sinal que parece a El-Rei nosso Senhor que El-Rei de Manicongo deve fazer e assinar daqui em diante”.

O Regimento orientava o rei do Congo a nomear homens de sua confiança para “cargos burocráticos” ou “serviços administrativos” nos mesmos moldes do reino português e para isso apresentava longa lista dos cargos:

                   “item Mordomo-mor; item Veador da casa; item Trinchante; item Copeiro-mor; item Copeiro-pequeno; item Ochão; item Manteeiro; item Servidor de toalha...”

E mais orientou o Regimento... Como que a imitar a organização de um reino europeu, sugeria-se que no Congo fossem criados títulos de nobreza. O grau de parentesco em relação ao “rei” proporcionou diversas dignidades: “duque de Bamba, duque de Sundi; duque de Sonho; duque de Bata; marquês de Pungo...”

Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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