terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

“Rei do Congo – A mentira que virou folclore”, de José Ramos Tinhorão – recomendações de D. Manuel a Simão da Silveira e orientações regimentais; interesses portugueses na centralização do poder político do Congo para melhor eficácia do projeto mercantil; escravos, cobre e marfim; disfarçando os interesses com a “pauta” sobre a expansão e fortalecimento do cristianismo


Os registros da última postagem sobre “Rei do Congo” mostraram que o Regimento outorgado por D. Manuel ao líder político do Congo, além das orientações sobre a organização de uma Casa Real
nos moldes das que existiam na Europa*, trazia recomendações ao delegado português que, no país africano, devia proceder de modo a manter a aliança política e a garantir o projeto econômico.
O fragmento abaixo do referido documento nos revela um pouco do exposto no parágrafo anterior:

                   “Item. Trabalhareis de saber no trato que lá pode haver, e de que coisas, e se os escravos, cobre e marfim e outras mercadorias que na terra houver se são todas do rei ou há aí mercadores, e até que soma das ditas coisas se poderá haver de tirar cada ano, e por que mercadorias; e se da mão do rei as ditas mercadorias são, e o que delas nos poderá dar; e a tentar se ele se oferece a nos dar cada ano alguma soma e quanto. Isto como de vosso; e de todo me avisai cumpridamente por vossa carta para sabermos o proveito que de lá se pode tirar”.

                            * Nunca é demais lembrarmos que havia o interesse português no “fortalecimento do poder central do Congo” e no reconhecimento do “rei” local.

(...)
Assim como salientado em postagem anterior, o autor selecionou trechos que foram organizados por Antonio Luís Ferronha, “Alguns documentos da Torre do Tombo acerca das navegações e conquistas portuguesas”. Os fragmentos seguem entre aspas.
(...)
Simão da Silveira, o encarregado de entregar pessoalmente a D. Afonso do Congo o regimento enviado por D. Manuel, recebeu orientações relativas à necessidade de compensar os gastos portugueses no envio dos navios ao Congo... Isso devia ser saldado pelo rei africano, e a recomendação era a de que o enviado deixasse claro que o transporte tinha um custo considerável:

                   “A grande despesa que fazemos com a enviada destes navios, fretes e clérigos, e coisas que lhe enviamos; e que já antes de nós foram e assim a despesa que se cá fez na manutenção e ensino de seus filhos”.

Silveira devia se esforçar também em retornar ao país com algum carregamento, já que “não haveria razão dos navios regressarem vazios”:

                   “Logo que chegardes, começais a negociar com o rei, o mais honestamente que puderdes, o aviamento dos navios que levais, e carga que para ele vos há de dar. Dizendo-lhe como nós vos enviamos com os ditos navios os quais se não puderam escusar para agasalho da gente e de todas as coisas que levastes, nas quais, e assim nos fretes, mantimentos e soldos, nós gastamos muito”.

Ainda em relação às orientações ao enviado português ao Congo, D. Manuel ressaltava a necessidade de ter em mente o “objetivo de servir a Nosso Senhor”... Todavia notamos que prevalecia o interesse econômico:

                   “Trabalhareis como logo se comece a entender na carga dos navios e porque ele para isso houver de dar assim de escravos como cobre e marfim” (...)

Simão da Silveira devia trabalhar “o mais honestamente” que pudesse a fim de que “escravos, cobre e marfim” fossem carregados nos navios da melhor maneira possível e “principalmente venham bem carregados de escravos e de outras coisas”.

O conteúdo das orientações de D. Manuel a Simão da Silveira não escondia a estratégia de mostrar ao rei africano que a ele devia “reciprocidade moralmente obrigatória”:

                   “por onde (quer dizer, a partir do reconhecimento dos favores que lhe foram prestados graças aos carregamentos desde Portugal), ele deve carregar os ditos navios o mais abastadamente que puder, de maneira que nós tenhamos ainda mais razão de fazer bem as suas coisas, como fazemos”.

O rei português dissimulava, mas não escondia o interesse maior de sua relação com o Congo... O principal “artifício” utilizado era o do fortalecimento da fé cristã, que sempre era citado depois das orientações claramente mercantis. Tinhorão destaca um trecho que evidencia o anteriormente afirmado: “posto que vós saibais certo que nosso intento e lembrança não é de haver proveito de fazenda, somente de acrescentamento da fé”.
Leia: Rei do Congo. Editora 34.
Um abraço,
Prof.Gilberto

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